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Os desafios à liberdade religiosa sob o governo Trump

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Massimo Introvigne, sociologue italien, fondateur du Centre pour l'étude des nouvelles religions © DR

Jesús Colina - Aleteia Itália - publicado em 28/08/17

Entrevista com o sociólogo Massimo Introvigne, fundador do Centro de Estudos sobre Novas Religiões

Se o governador do Kansas, Sam Brownback, se tornar o próximo embaixador dos Estados Unidos para a liberdade religiosa no mundo, conforme proposta do presidente Donald Trump, quais são os desafios que terá de enfrentar?

Aleteia conversou com o sociólogo italiano Massimo Introvigne, fundador e diretor do Centro de Estudos sobre Novas Religiões (Cesnur). Introvigne também já foi o representante da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) para o combate ao racismo, à xenofobia e à discriminação, lutando em particular contra a discriminação a cristãos e membros de outras religiões.

Eis a entrevista:

. . .

Aleteia:No âmbito internacional, quais são, na sua opinião, as ameaças mais graves à liberdade religiosa que deverão ser abordadas pelo próximo representante dos EUA para esta questão?

Massimo Introvigne: Seria trivial responder que são a Coreia do Norte, os territórios ainda controlados pelo Estado Islâmico, os países muçulmanos que punem a apostasia com a pena de morte. Esses problemas são antigos e, no tocante a eles, vai ser difícil que o representante dos EUA consiga resultados concretos que possam ir além de manter acesa a consciência internacional. Por outro lado, acredito que Brownback possa obter algo da Rússia e da China, que são hoje os dois maiores obstáculos para uma política global e compartilhada de liberdade religiosa, embora ele vá ter problemas até mesmo dentro do próprio governo Trump.

Aleteia:O recente relatório anual da Comissão do Departamento de Estado Americano para a Liberdade Religiosa (USCIRF) não critica só os adversários dos EUA no xadrez internacional, mas também aliados como a Arábia Saudita e a Turquia. Como os EUA deverão comportar-se com esses países “amigos”? É coerente vender-lhes armas ou aliar-se militarmente a eles e, ao mesmo tempo, assistir à violação de direitos religiosos básicos?

Introvigne: A verdade é que no xadrez do Oriente Médio há muito poucos “bons”. Mas certamente é justo condicionar a ajuda militar a uma atenção não apenas formal à liberdade religiosa.

Aleteia:O senhor considera que o “veto de viagem” imposto por Trump, que proíbe os cidadãos de seis países de maioria muçulmana considerados um risco em termos de terrorismo, pode ser considerado um problema para a liberdade religiosa?

Introvigne: Eu considero o “veto de viagem” um erro porque, com estatísticas em mãos, não é desses países que vêm os terroristas. Se pegarmos os maiores atentados dos últimos anos no Ocidente veremos muitos sauditas e outros dos países do Golfo, mas também argelinos, marroquinos e até cidadãos franceses, belgas e ingleses, mas nenhum iraniano. O “veto de viagem” irritou com razão os muçulmanos e torna o diálogo ainda mais difícil, inclusive no tocante à liberdade religiosa.

Aleteia:O relatório do Departamento de Estado norte-americano também critica a China e a Rússia por violações à liberdade religiosa. Os Estados Unidos têm elementos para exigir o respeito à liberdade dos crentes nesses países?

Introvigne: Como eu disse, estes são os principais problemas para Brownback. Mas são diferentes um do outro.

A China restringe a liberdade religiosa para proteger o Estado e a hegemonia do Partido Comunista, não uma religião específica, enquanto a Rússia quer proteger a Igreja ortodoxa do proselitismo que vem de formas religiosas mais dinâmicas, muitas delas de origem norte-americana. A China tem uma política que pode ser enervante, como a Santa Sé bem sabe, de idas e vindas, de concessões seguidas por voltas atrás. Eu distinguiria dois problemas. Os primeiros dizem respeito a católicos e protestantes que não querem aderir às organizações religiosas “oficiais” e “patrióticas”, que são as únicas reconhecidas e autorizadas pelo regime. Hoje existe certa tolerância de fato, e uma conversa em andamento com a Santa Sé, mas contrabalançada por gestos e retrocessos para sinalizar que o regime pretende sempre controlar rigorosamente quem não se ajusta. O segundo problema é o dos chamados “xie jiao”, grupos religiosos que estão numa lista negra e cujos adeptos correm o risco de ser presos ou algo pior ainda. O Ocidente costuma traduzir “xie jiao” como “seitas”, mas é um erro. A expressão vem da era Ming, bem antes das controvérsias sobre seitas no Ocidente, e o significado oscila entre a teologia (“crenças heterodoxas”) e a ordem pública (“movimentos religiosos criminosos”). Quem usa a palavra “seitas” no Ocidente (e no geral são ativistas hostis a esses grupos, enquanto a maioria dos sociólogos acadêmicos a evitam) registra centenas delas, mas, na China, os grupos classificados como “xie jiao”, que enfrentam consequências bem mais graves, são poucos. Certamente, a mentalidade chinesa é diferente da europeia. Precisamente porque a repressão pode ser drástica, a China deveria ser persuadida a vincular a categoria “xie jiao” só a crimes graves efetivamente cometidos e não a meras crenças heterodoxas ou ideias críticas sobre o regime. As instituições governamentais sobre os “xie jiao” começaram conversas com estudiosos internacionais, às quais eu mesmo fui convidado. Mas o diálogo é muito difícil.

A situação na Rússia, de certa forma, é ainda pior, como ficou evidenciado no recente banimento das Testemunhas de Jeová, definido pela dissidente histórica Lyudmila Alexeieva como “não apenas um erro, mas um crime”, além da tentativa de banir outros grupos como a Cientologia, ou as leis de Yarovaya, que proíbem o proselitismo de religiões e movimentos fora dos seus próprios locais de culto. Pior porque o aparelho jurídico é inspirado num princípio aberrante de “segurança espiritual” que incluiria na proteção dos cidadãos a sua proteção contra ideias religiosas diferentes do cristianismo da Igreja ortodoxa, e porque os russos tentam exportar as suas teses com ajudas a organizações “amigas” e uma propaganda muitas vezes baseada em “fake news“, mas muito sofisticada, que os chineses não têm. Um erro que eu tenho certeza de que Brownback não cometerá é o de se deixar limitar pela eventual antipatia a grupos como as Testemunhas de Jeová e a Cientologia. Não são os métodos de gestão das suas organizações e de proselitismo o verdadeiro cerne do problema, porque se os atos ilícitos fossem cometidos por indivíduos, a Rússia poderia processar esses indivíduos; o problema são as sentenças que proíbem livros e ideias, com base numa mentalidade que exclui a liberdade religiosa conforme definida por convenções internacionais que a própria Rússia assinou. Brownback bem poderia partir da constatação de que inclusive na Igreja ortodoxa, e talvez em torno a Putin mesmo, existem “falcões” e “pombas” no tocante à repressão de minorias religiosas, para atacar essas contradições. Mas, como eu dizia, ele vai encontrar freios e “amigos do Kremlin” no próprio governo Trump. O relatório da USCIRF a respeito da Rússia usa expressões que justificariam a inclusão do país na lista de “preocupação particular”, que é prelúdio de sanções até que a situação da liberdade religiosa melhore. E esta era a recomendação da comissão que preparou o relatório, mas, no fim, “alguém” do Departamento de Estado vetou.

Aleteia:O senhor não acha que os Estados Unidos se consideram uma espécie de “polícia” da liberdade religiosa no mundo?

Introvigne: Há, de fato, um erro que os americanos muitas vezes cometem: acreditar que o modelo americano deve ser proposto ao mundo inteiro e que, assim, se resolveria o problema da liberdade religiosa. Você não pode propor, e muito menos impor, aos ortodoxos e aos russos em geral o modelo da Constituição dos Estados Unidos, em que todas as religiões, grandes ou pequenos, novas ou recentes, são estritamente consideradas iguais e é proibido ao Estado manifestar consideração especial por uma ou algumas. Este modelo, excelente para os Estados Unidos, é ligado à história americana, que não é a história russa. Certamente, as religiões devem ser tratadas todas igualmente pela lei, com todas as garantias de liberdades fundamentais. Mas não é contra a liberdade religiosa o fato de um Estado decidir reconhecer o papel especial de uma ou mais religiões na história do país, assegurando-lhes um reconhecimento e uma colaboração com as autoridades que não são concedidos a outras organizações religiosas. Isto foi repetidamente estabelecido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (que, diga-se de passagem, não é um órgão da União Europeia, mas do Conselho da Europa, do qual a Rússia faz parte) e pela OSCE (da qual também a Rússia faz parte). É o caso da Igreja anglicana no Reino Unido ou da Igreja católica na Itália, onde a Constituição atribui um papel especial à Concordata [de 1929], mas também prevê acordos com outras religiões significativas e assegura a liberdade religiosa a todos. Poderia ser o caso da Igreja ortodoxa na Rússia. É o modelo italiano, não o americano, que pode ser indicado aos russos num diálogo que pretenda alcançar resultados.

Tal como acontece com os chineses, o diálogo com os russos é difícil. Eu tive experiência em 2011, quando fui representante da OSCE para a liberdade religiosa e conheci o metropolita Hilarion e o patriarca Kirill, e, pessoalmente, não gostaria de desistir. Sei que a Igreja ortodoxa, a meu ver cometendo um erro gravíssimo, aplaudiu o “banimento” das Testemunhas de Jeová. Mas não devemos confundir a totalidade da Igreja ortodoxa com os seus segmentos mais radicais e extremistas.

Aleteia:Existem violações da liberdade religiosa nos Estados Unidos que precisam ser abordadas?

Introvigne: Este problema tem dois aspectos. O primeiro é bastante delicado e diz respeito ao conflito entre o direito à liberdade religiosa e outros direitos, em particular o das pessoas homossexuais a não serem discriminadas. Há casos de fotógrafos, floristas e confeiteiros contrários ao casamento homossexual e que não querem prestar seus serviços a essas cerimônias, mas muitas vezes são condenados por discriminação. Há quem pense que essa questão se resolva com uma lei sobre liberdade religiosa que os autorize a algum tipo de objeção de consciência. Nem tudo é falso nesta argumentação, mas o risco é o de arrastar o problema da liberdade religiosa para o âmbito das “guerras culturais”, das quais ele deve ser diferenciado. Talvez existam outras vias legais para resolver com equanimidade e bom senso os casos de confeiteiros que não querem fazer bolos com dois homens de açúcar vestidos de branco em vez de um homem e uma mulher, sem fazer dessas casuísticas o pilar da problemática da liberdade religiosa, o que me parece forçado.

O segundo aspecto é que os próprios Estados Unidos não são estranhos à discriminação contra grupos rotulados como “seitas” e que às vezes não parecem ter o direito de ser tratados como todos os outros. É verdade que os tribunais muitas vezes bloquearam as manobras dos chamados movimentos anti-seitas. Mas continua existindo uma cultura de intolerância. Dois exemplos: o primeiro é o programa televisivo da atriz Leah Remini sobre a Cientologia, que tem certa audiência, talvez porque a apresentadora é uma mulher bonita, mas com frequência me parece mais uma sequência de insultos do que de argumentos. E o fato de que o TED, um enorme site educativo, tenha publicado um vídeo sobre “cults” (palavra que se traduz como “seitas” e não como “cultos”) repetindo estereótipos sobre manipulação mental criticados pela grande maioria dos estudiosos. Quando o vídeo chegou a oitocentas mil visualizações, eu organizei uma carta ao TED assinada por 27 estudiosos de vários continentes: honestamente, ela foi assinada por todos os nomes mais famosos no estudo de novos movimentos religiosos. Uma carta gentil, mas o TED nem sequer respondeu.

É verdade que isso é intolerância, que é um fato cultural, e não discriminação, que é um fato jurídico. Quando estive na OSCE, apresentei numa conferência internacional em Roma aquilo que muitos agora chamam de “modelo de Roma”: a intolerância sempre prepara a discriminação, e a discriminação, como a Rússia ensina hoje, prepara a perseguição propriamente dita.

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