Alguns exemplos bem práticos para saber se você “manda mesmo” naquilo que acha que é “só seu”Com monótona repetição, como um ex-libris da causa a favor da descriminalização do aborto, são mostradas fotografias de barrigas de mulheres com as palavras: “Aqui mando eu!“.
Parece uma afirmação inquestionável. É interessante mostrar em que princípio se apoia e a que consequências tal princípio pode levar. A moral não está feita de sentenças isoladas: os mesmos princípios morais devem estar na base das nossas diversas actuações, pois, se assim não acontecer, tornamo-nos pessoas ou moralmente “esquizofrénicas” ou sem princípios. Defendo que ter como incondicional o princípio do “aqui (no meu corpo) mando eu” é simplesmente um erro.
1) Consideremos que a mulher queira dizer com essa frase que o embrião é apenas uma parte do seu corpo.
Mesmo se assim fosse (que não é), o argumento seria válido? Vejam bem como alguns exemplos mostram que a resposta é negativa:
- Um homem chega a um médico e diz: “Estou farto de ver. Os olhos são meus e aqui, nos meus olhos, mando eu. Por favor, pode tornar-me cego?”. Se o médico acedesse ao seu pedido, como actuará a Justiça? O então cego será tido por maluco, mas porventura o médico será inocente?
- Uma mulher saudável e com sentimentos generosos chega a um consultório e pede ao médico: “Por favor, tire-me os dois rins para doação, pois ambos são meus e aqui mando eu. Não me importo de passar a vida com hemodiálise”. Se o médico proceder à operação, a mulher não será condenada por insensatez. Mas receberá louvores o médico por ter acedido àquele pedido?
Mesmo com exemplos que afectam apenas o corpo (e não uma nova vida), percebe-se que não se deve interpretar o ”aqui mando eu” como um salvo-conduto para toda e qualquer actuação sobre os próprios órgãos e que se deve pedir à sociedade e à Justiça que actuem sobre quem fosse cúmplice de um tresloucado dador.
2) Mas consideremos agora que a mulher “sabe” que o embrião é alguém diferente dela e que o que pretende significar com o “aqui mando eu” é que, enquanto estiver dentro dela, a mulher é dona absoluta da criança e do seu destino.
A frase também é falsa. Permitam-me novos exemplos:
- Uma mulher grávida vai ao médico e desabafa: “Já tenho 3 filhos saudáveis. Quem me dera ter uma criança deficiente, para exteriorizar os meus sentimentos de altruísmo sacrificado; por favor, dê-me um medicamento que altere o desenvolvimento normal do meu filho; não se esqueça de que aqui mando eu”. Se o médico atender o pedido, não deverá ser julgado e castigado? E que fará a Justiça com a mãe? Ou vai para tratamento psiquiátrico ou será igualmente condenada.
- Passemos a casos mais reais. Uma mãe pode com legitimidade dizer: “Estes filhos, de 2 e 3 anos, são meus. E como na minha casa mandamos eu e o meu marido (verdade inquestionável), posso espancar os meus filhos para os educar”. Neste caso de violência doméstica, a Justiça não terá uma palavra a dizer?
Os exemplos poderiam suceder-se, mas penso que se torna patente que sim, “aqui mando eu”, mas nem sozinha, nem sempre e não de qualquer maneira. A afirmação não é tão inquestionável quanto parece.
Além do mais, na maioria dos países onde o aborto é legal, o “aqui mando eu” aplicado ao nascituro deixa de ser reconhecido a partir de certa idade da criança.
Portanto, se não é o “lugar” que dá à mulher um domínio absoluto sobre a criança, o que será então? Por que é que até aos 14 meses (ou quantos forem) manda ela e depois não? A questão acabará sempre por se orientar para o estatuto ontológico do embrião: se for “alguém”, não se pode tocar nunca; se for “algo”, admitirá excepções. No entanto, a mínima dúvida sobre a entidade do embrião (para quem não souber ainda que se trata de “alguém”) deveria ser suficiente para não se arriscar a matar ou deixar matar uma pessoa.
Curiosamente, o “aqui mando eu” é absolutamente verdadeiro em sentido inverso ao usado pelos defensores do aborto quando o que a mulher quer dizer é que ninguém pode matar o seu filho ou fazer-lhe mal. As tais fotografias teriam sido muito úteis na China, por exemplo, nas décadas passadas, quando as mulheres com mais de um filho eram obrigadas a abortar. Realmente, de uma mãe espera-se que tenha consciência da missão gigantesca que tem por diante: o seu ventre deve ser a fortaleza inexpugnável contra todas as ameaças ao bebé. Usar o “aqui mando eu” em sentido perverso – eu, mãe, sou a ameaça para o meu bebé –, além de irracional, deveria chocar-nos a todos.
Mas por que razão deverá uma lei interferir na decisão da mulher? Penso que os exemplos dados atrás sugerem a resposta: nem todas as decisões pessoais são boas e algumas têm uma incidência social notável.
Na questão da descriminalização do aborto, enfrentam-se duas atitudes inconciliáveis: por um lado, a de quem estima que a liberdade pessoal não paga nunca tributo a ninguém. São os que se negam a entender que certas opções pessoais afectam a própria sociedade: para esses, não há bem nem mal nesse tipo de opções ou, se há, fica subordinado à mera capacidade de escolha, valor supremo e intocável. Assim, só seria um mal o que limitasse a possibilidade de escolher. Claro que os defensores de tal tese terão dificuldade em explicar por que razão o Estado alemão condenou o canibal de Fulda, um homem que “apenas” comeu alguém que, voluntariamente, se apresentou para essa explícita finalidade (ser comido), proposta abertamente num site da internet.
Do outro lado, encontramos a atitude de quem pensa que a liberdade é responsável pelas suas opções, que muitas vezes tem de se justificar perante terceiros e que, nalguns casos, a sociedade pode e deve orientar para o bem da própria pessoa e da sociedade essa liberdade, pois ela própria – a liberdade -, no seu exercício, não é infalível. E é preferível balizar as opções de escolha para que a pessoa não opte por comportamentos que transformem a sua liberdade num tirano cruel e insensível.
As leis anti-aborto são dissuasoras, mas são, além disso, muito pedagógicas, pois recordam que o novo ser é também um novo cidadão (mesmo que com direitos incipientes). E recordam igualmente que a mulher é a primeira responsável pelo bem da criança. Ao mesmo tempo, essas leis (onde ainda existem) protegem a mulher de pressões externas de todo o tipo: dos pais, do namorado ou marido, dos patrões despóticos, de mexericos, etc.
Não deveria a sociedade sentir-se mais segura quando vê que o Estado também vela pelos mais indefesos e reconhece à mulher o direito de defender o filho?
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VEJA TODOS OS 4 ARTIGOS DESTA SÉRIE:
Parte 1: “Problema de consciência”?
Parte 2: “Crianças não queridas”?
Parte 3: É válido dizer “Ninguém aborta por gosto”?
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SOBRE O AUTOR:
O Pe. João Paulo Pimentel é um sacerdote português a quem Aleteia agradece muito pela generosidade em contribuir para o site. Nesta série de 4 artigos, ele nos propõe reflexões de fundamental importância para a devida discussão sobre o aborto, refutando sofismas e argumentações inconsistentes dos defensores dessa prática infanticida.