A criação do homemNo Evangelho de São Mateus, lemos que, nos confins da Judeia, para além do Jordão, alguns fariseus se aproximaram de Jesus com o intuito de o testarem no conhecimento da lei, perguntando a Ele se era permitido a um homem repudiar a sua mulher, por qualquer motivo. Assim Jesus respondeu: “Não lestes que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher, e disse: ‘Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe, e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne’? Portanto, já não são dois, mas uma só carne. Pois bem, o que Deus uniu, não o separe o homem”. Os fariseus, em seguida, questionaram Jesus: “Por que foi então, perguntaram eles, que Moisés preceituou dar-lhe carta de divórcio ao repudiá-la?”. Ao que Jesus replica, concluindo: “Por causa da dureza do vosso coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas mulheres; mas no princípio não foi assim” (Mt 19,4ss).
Trata-se, esta, de uma passagem evangélica que permeia quase a integridade do projeto teológico de São João Paulo II, na Teologia do Corpo. Cristo, quando remete seus interlocutores ao princípio, refere-se à indissolubilidade do matrimônio como fundamentada por Deus Criador no ato mesmo da criação. Pode ser que, numa determinada cultura, o matrimônio seja dissolvido, na prática, mas no princípio não era assim, afirmação esta que tem dois sentidos imediatos: não era assim no princípio da vida, logo após a criação e antes do pecado original; e não é assim, ainda e sempre, na alma do ser humano, que traz sempre consigo o princípio, e suas finalidades. Tudo o que Deus estabeleceu para nós no princípio, a alma humana sente em si mesma não apenas como profunda necessidade, mas como realidade inalterável, ainda que – por causa do pecado original – possa tornar-se cega e surda para os chamados interiores, que, de uma maneira ou de outra, repercutem na consciência, por exemplo: 1) toda alma humana sabe e sente que está se tornando “uma só carne” com outra, mesmo numa relação sexual extraconjugal casual, e todas as sensações estranhas, psíquicas e emocionais, que possam advir depois da mesma – como a culpa e a repulsa – vêm daí, da percepção profunda de uma fratura entre a alma e o corpo; muitas psicanálises e terapias, por exemplo, tentarão extirpar essas sensações da pessoa como sendo efeitos estranhos e “neuróticos”, adquiridos de um suposto “moralismo” da cultura, não percebendo que é a verdade se manifestando ou reclamando; e, assim, colabora-se com a mentira; 2) toda alma humana sente que seu matrimônio é indissolúvel, ainda que faça esforço para se adaptar (até discursivamente) a uma cultura em que a fragmentação das famílias se tornou praticamente a regra, e nisso se pode incluir não apenas homens e mulheres que são cônjuges, mas também os filhos por esses gerados, que necessariamente sofrem com o divórcio, pois o que parece uma “simples” separação externa, é a grave separação interior de uma unidade que, na alma, no princípio, é indissolúvel e permanecerá sendo, ainda que a aparente “dissolubilidade” de tal vínculo no plano visível da cultura se torne mais e mais popular. A dessincronização entre a cultura e as necessidades da alma é uma das tragédias humanas que parecem acentuar-se ao nível do paroxismo conforme nos aproximamos do fim dos tempos.
Há quase dois mil anos, naquele diálogo, tratando-se de um grupo de fariseus, Jesus sabia que estava falando com pessoas que conheciam muito bem o texto das Escrituras. Refere-se, especificamente, ao Livro do Gênesis, e ao relato da criação do homem e da mulher, no primeiro e segundo capítulos do mesmo. De forma complementar, também esses são textos que devemos ter sempre em mente para que compreendamos com precisão as conclusões do Santo Padre. O Gênesis nos revela que “O Senhor Deus tomou o homem e colocou-o no jardim do Éden para cultivá-lo e guardá-lo. Deu-lhe este preceito: ‘Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente'”. E continua:
O Senhor Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada.” Tendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todos os animais dos campos, e todas as aves dos céus, levou-os ao homem, para ver como ele os havia de chamar; e todo o nome que o homem pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro nome. O homem pôs nomes a todos os animais, a todas as aves dos céus e a todos os animais dos campos; mas não se achava para ele uma ajuda que lhe fosse adequada. Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar. E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem. “Eis agora aqui, disse o homem, o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela se chamará mulher, porque foi tomada do homem.” Por isso o homem deixa o seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher; e já não são mais que uma só carne. O homem e a mulher estavam nus, e não se envergonhavam (Gn 2,15-25).
Quando as Escrituras inspiradas revelam que Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança, conforme nos aponta São João Paulo II, é evidenciada a “impossibilidade absoluta de reduzir o homem ao ‘mundo'”, isto é: o homem não pode e nem deve ser compreendido, nem explicado, com as categorias deduzidas do mundo, isto é, do “conjunto visível dos corpos” (Teologia do Corpo, 2). Esta conclusão é grandiosa, pois trata-se mesmo de um elemento que aparece, de formas contrárias, nas escolas de pensamento que conflituam no mundo moderno: a maioria delas, de um lado, parece querer reduzir o homem ao mundo, repudiando qualquer explicação da vida humana que recorra a um plano transcendente – assim mundanizando-nos, animalizando-nos; outras, enraizadas em tradições antigas como o cristianismo ou a filosofia grega aristotélica, reafirmam e defendem que é precisamente isto que caracteriza o ser humano em sua especificidade, a saber, que o mesmo possui semelhanças físicas ou biológicas com os outros animais, mas possui uma alma racional que, como diz Aristóteles, eleva-o acima das outras espécies, que só possuem alma vegetativa e alma sensitiva. A parte racional da alma humana, para o Estagirita, estava claramente enraizada no eterno, num plano transcendente, isto é, no divino, ainda que nosso corpo visível esteja presente na natureza, juntamente dos outros seres e coisas. A perfeição da revelação bíblica, no entanto, explica-nos também o por quê do surgimento de tantas escolas de pensamento que tentam negar a transcendência, e desumanizar o homem, no período moderno, e também por que essa negação se faz presente na prática de tantos seres humanos: trata-se de uma consequência do pecado original; Adão, com medo, esconde-se de Deus nos arbustos do jardim. A isto veremos melhor em outro artigo; por ora sigamos com os fatos do princípio.
As narrativas do Gênesis supracitadas descrevem o estado do ser humano logo após a criação, em comunhão com seu Criador: a felicidade dos primeiros homens, e sua inocência original, antes da primeira queda. O ser humano foi criado como sujeito de uma aliança, constituído como pessoa – superior aos animais, os quais, na verdade, nomeia – e à altura de “companheiro do Absoluto” (Teologia do Corpo, 6). Dotado de alma – onde está impressa a imagem e a semelhança de Deus, seu Criador – e de liberdade, é dado ao homem “discernir e escolher conscientemente entre o bem e o mal”, quando Deus estabelece o limite que o ser humano deveria respeitar para permanecer em plena aliança. Tratava-se de uma escolha entre a vida e a morte: comer da árvore da ciência do bem e do mal, barraria-lhe o acesso à árvore da vida. É da vontade de Deus que o homem viva plenamente, e esteja absorvido inteiramente pela aliança – mas a permanência na relação com Deus deve ser uma escolha livre do ser humano. Como Adão sentiu-se sozinho, desejando uma semelhante que pudesse estar com ele em relação, Deus é pleno e não precisa de nada além de Si mesmo, mas quis, por amor, criar-nos livres, para viver uma relação pessoal com cada alma por Ele criada. Não há verdadeira relação quando uma das partes é privada de liberdade, e mesmo os vínculos humanos mais definitivos, como o casamento, expressam isso: nesses, não há perda de liberdade, mas o ganho de uma realidade relacional rica, com o livre consentimento da pessoa. Como a pessoa permanece livre para rejeitar a aliança, é preciso que a sua afirmação seja livremente mantida e reafirmada, diariamente, e ao longo do tempo. E como a intimidade mútua de um casal aumenta e se enriquece com o tempo e a convivência, também assim acontece entre a alma de uma pessoa e Jesus Cristo.
Os animais, por sua vez, não são livres, pois, não tendo alma racional, apenas obedecem a seus instintos; nós, humanos, temos instintos – alma vegetativa, alma sensitiva – mas também respondemos a Deus, com nossa alma propriamente humana. Nisso tudo encontra-se a irracionalidade da concepção pós-moderna de “liberdade”, que seria algo como não estar limitado por nenhuma restrição (seja interna, ou externa) e, logo, não precisar responder por nada. Enquanto isso, a realidade de nossa verdadeira e inescapável liberdade – enraizada em nossa alma, e em sua semelhança, e relação, com o Criador – apenas estabelece que somos livres para escolher o mal, mas jamais isentos das consequências dessa escolha; e, portanto, a escolha do bem também deve necessariamente ser livre, intencional, consciente e proposital. Todos os esforços políticos de escolas modernas como o socialismo marxista, entre outras utopias, nada mais é do que a imaginação de um estado de coisas em que a vida humana seria essencialmente boa, e socialmente perfeita, sem que fosse necessário um esforço consciente para o bem: o último esforço seria o da implementação de tal sistema de poder que tornará a vida “perfeita” e sem tensões, dificuldades ou desigualdades, e para isso também basta permitir que os seus representantes tomem o domínio de tudo. Trata-se, precisamente, do falso paraíso na terra, o verdadeiro ópio do povo, que na prática só resulta no seu contrário, e a tantos infernos concretiza em nossa realidade. Para não cair nestas perigosas iscas, deve-se reconhecer duas coisas sobre a alma humana: ela traz em si a semelhança com Deus, e a relação com Ele, a memória e o desejo do paraíso; mas também, intrinsecamente, traz as más inclinações, inextirpáveis nesta vida, herdadas do pecado original. Portanto, qualquer regulação legítima da vida humana, individual e social, deve partir dessa percepção, e da necessidade de uma educação para a liberdade, para a responsabilidade, e para o amor.
Mas, como vimos, o homem é também corpo, e o corpo do homem – muito diferentemente do que queriam os heréticos gnósticos – é realidade do vínculo do homem com o seu Criador, em vez de ser algo de que o homem devesse se desvencilhar, para restar somente a alma, esta sim boa e divina. O corpo do homem possui uma dimensão de sacramento, isto é, de realidade e sinal visível daquilo que ocorre em sua alma – pense, especialmente, no rosto humano, e suas finas expressões emocionais, assim como seus sorrisos, reveladores, na dimensão visível, de algo que somente o ser humano vive na dimensão invisível. Com o ser humano, no princípio – e, em especial, antes do pecado original – entrou a santidade no mundo visível, que, por sua vez, foi criado por Deus para o homem. Aí também se expressa o amor especial que Deus tem para conosco, diante de toda a criação. “Na criação, antes do pecado original, o homem se constitui como que um primordial sacramento, entendido como sinal que transmite eficazmente ao mundo visível o mistério invisível, oculto em Deus desde a eternidade. (…) O corpo, de fato, e só ele, é capaz de tornar visível o que é invisível: o espiritual e o divino. Foi criado para transferir para a realidade visível do mundo o mistério oculto desde a eternidade em Deus, e assim d’Ele ser sinal” (Teologia do Corpo, 19). A inocência original do ser humano no princípio, ligada à experiência do significado esponsal do corpo – isto é, feito para desposado, para ser doado, do homem para a mulher, da mulher para o homem, em sua complementaridade biológica e subjetiva – “é a santidade que permite ao homem exprimir-se de modo profundo com o próprio corpo, e isso precisamente mediante o ‘dom sincero’ de si mesmo”. O corpo humano é lugar de santidade, lugar onde Deus se torna visível à totalidade da criação. “A consciência do dom [de si mesmo, corpo e alma] condiciona, nesse caso, ‘o sacramento do corpo’: o ser humano se sente, no seu corpo de varão e de mulher, sujeito de santidade” (Teologia do Corpo, 19).
O valor inestimável da Teologia do Corpo, de São João Paulo II, no momento histórico preciso em que a realizou, oferecendo ao homem do Século XX, através das palavras de Jesus Cristo (que é, Ele mesmo, a Palavra de Deus viva e encarnada) a rememoração do que nós somos, como humanos, em princípio, deve-se ao fato de que “a situação interior e, ao mesmo tempo, cultural do homem de hoje parece afastar-se daquele ‘princípio’ e assumir formas e dimensões que divergem da imagem bíblica do ‘princípio’ em pontos evidentemente cada vez mais distantes” (Teologia do Corpo, 23).
No meio da rebelião social e sexual da sociedade moderna e contemporânea, a teologia católica do corpo e da sexualidade, e sua aplicação direta na vida humana como um firme critério educacional (para nós mesmos e nossos filhos) no sentido do reencontro da plenitude e da verdadeira realização, é, de fato, “uma ilha de valor em uma mar de preços” – uma possível recuperação de dimensões humanas cada vez mais negligenciadas e repudiadas pelo homo economicus, e pelo exército multiculturalista e politicamente correto do poder global, que visa ao controle massivo das respostas humanas. Serve também como fonte de conhecimento da reta doutrina cristã para todos aqueles que vivem nesta civilização em crise e ignoram a realidade de seus antigos fundamentos, conhecendo-a somente através dos estereótipos equivocados do senso comum anti-cristão e, mais especificamente, anti-católico. A religião católica é comumente referida pelo homem moderno tomado pelo ethos da rebelião como sendo uma instituição “repressora da sexualidade”, ou que considera tudo o que é “sexual” como “pecado”, e nada está mais distante da verdade do que essa visão. Como veremos, através da obra de São João Paulo II, e em seguida através de outros documentos da Igreja, o que Jesus Cristo realmente nos trouxe, na Nova Aliança, é a possibilidade de recuperarmos o verdadeiro valor do corpo e da sexualidade, um altíssimo, sagrado valor – e da vida humana em si mesma.
Aqui vale também, ainda que rapidamente, um aceno à tendência da “nova era” de afirmar uma espiritualidade desinstitucionalizada, destacada da religião: em primeiro lugar porque, do ponto de vista cristão, é bíblica e fundamental a indissociabilidade entre Cristo e a Sua Igreja, que é sacramento de Sua presença viva na terra; em segundo lugar, porque aquela, da nova era, é uma espiritualidade rebelde, e a rebeldia é o oposto da frutificação virtuosa do espírito, que só pode reencontrar a árvore da vida na obediência ao Criador autorrevelado. Deus quer fazer uma aliança com as almas; enquanto isso, o demônio quer, de um lado torná-las materialistas, de outro apenas “espiritualiza-las”, sustentando um discurso anti-religioso que deve seriamente nos preocupar, já que, assim, tantas almas ficam em terreno turvo e vulnerável, presas nas ilusões do Satanás que se transfigura em anjo de luz. “Eu, ser batizado por um homem pecador? Eu, me confessar para um homem, pecador? Deus se manifesta em todas as religiões, ou basta que eu converse com Deus, diretamente”. Essa é a mentalidade moderna e pós-moderna, para a qual se tornou inaceitável a verdade de um Deus que, intencionalmente, fundou uma instituição, que instituiu, Ele mesmo, uma economia sacramental, ministrada por homens, a qual devemos humildemente recorrer. Afinal, o próprio testemunho de Cristo, não apenas em palavras mas em ações, é aquele da humildade inigualável do Deus que se fez Homem e que antes disso se fez Menino, em tudo dependente de uma Mãe – mostrando-nos que a humildade, aos homens, é o caminho para se aproximar de Deus – e que vai, Ele mesmo, aquele que a todos batiza, ser batizado por um homem. “João recusava-se: Eu devo ser batizado por ti e tu vens a mim! Mas Jesus lhe respondeu: Deixa por agora, pois convém cumpramos a justiça completa” (Mt 3,14-15).
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