Vários leitores fizeram esta pergunta diante das reações de religiosos que cancelaram o serviço em protesto contra programa blasfemo de NatalAs reações de indignação de milhões de cristãos (e até mesmo de seguidores de outras religiões ou de nenhuma) diante do assim descrito “especial de Natal” produzido pelo grupo Porta dos Fundos e veiculado pela Netflix envolveram enfáticas campanhas de cancelamento de assinaturas do serviço de streaming, às quais se uniram também sacerdotes e bispos, inclusive de fora do Brasil.
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O fato de que bispos e padres cancelassem a sua assinatura da Netflix levou não poucas pessoas a se perguntarem por que é que, antes de qualquer coisa, eles estavam assinando tal serviço. “Afinal, padre tem tempo para isso?“; “E padre tem dinheiro para isso?“.
Perguntas válidas, mas que requerem distinções
Tais perguntas são compreensíveis, mas também podem demonstrar uma visão idealizada e irreal sobre os religiosos, por um lado, e até hipócrita e profundamente injusta, por outro.
Tempo e descanso
Padres e bispos também precisam descansar o corpo e a mente, razão pela qual os seminários têm atividades de esporte e lazer, além de tempos livres para leitura e, sim, também para televisão.
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Em geral, quando veem televisão, seminaristas, padres e freiras assistem a telejornais e a programas religiosos, culturais ou esportivos, mas também podem assistir a filmes e séries de ficção, desde que, obviamente, o conteúdo seja compatível com a vida de quem segue Jesus Cristo. Isto se aplica também aos livros: não há qualquer impedimento moral para que um religioso leia obras clássicas da literatura, se compatíveis com os valores cristãos. Aliás, grandes obras da literatura mundial foram escritas por católicos fervorosos, inclusive religiosos, e grandes estudos sobre o legado clássico foram realizados por homens e mulheres da Igreja.
Os mesmos critérios de bom senso, diga-se de passagem, valem para qualquer cristão na hora de ler, ouvir música, ir ao cinema, assistir à televisão e até manter uma conversa.
Programação adequada ou imprópria
Mesmo sabendo-se que grande parte das produções televisivas é de conteúdo frívolo ou pelo menos questionável, é fato que também existem bons programas na televisão, nos catálogos das empresas de streaming e nos serviços gratuitos de vídeos, como o YouTube. Assistir a eles, para quem gosta, é uma forma de descanso – e não há nada de errado em que padres, freiras e bispos, ou mesmo o Papa, se permitam esses momentos de relaxamento, sem que isto signifique negligenciar as suas muitas e sérias responsabilidades.
Quanto a assistir a programação imprópria, incluindo conteúdo pornográfico, também é fato que há religiosos que o fazem, de modo profundamente incoerente e lamentável. O mau comportamento de alguns, no entanto, não representa o da maioria – e generalizar seria cair numa postura injusta e intelectualmente desonesta.
Custo
A respeito do custo, é bastante oportuno que os católicos e os cidadãos em geral questionem o que é feito do dinheiro dado à Igreja, bem como do dinheiro que se dá aos governos ou a quaisquer outras entidades. Afinal, não faltam os desvios de todo tipo.
Em paralelo, também é preciso usar de bom senso. A assinatura de um serviço de streaming é, objetivamente, mais barata que várias outras formas comuns e populares de lazer, de modo que o fato de uma comunidade de padres ou freiras gastar cerca de 25 reais ao mês para ter acesso a conteúdos televisivos não é, por si só, razão de escândalo. Para se manter um nível razoável de discussão, seria oportuno, a este propósito, que as pessoas que se mostram contrariadas exponham com mais clareza o porquê de considerarem que este gasto seria indevido.
Sabe-se, e deplora-se, que há religiosos que se permitem gastos desnecessários e pouco exemplares, ou mesmo abertamente escandalosos e até criminosos. Novamente, tal como acontece com os que assistem incoerentemente a programas impróprios ou abertamente opostos à fé professada, também se sabe que não é o caso da maioria.
Atividades moralmente neutras
Em suma, assistir à televisão, ir à praia, tirar férias, comer em restaurantes ou jogar futebol são atividades moralmente neutras: nem boas, nem más em si mesmas. O que as torna boas ou más é o conjunto de intenção e contexto em que se praticam. É diferente das atividades que já em si mesmas são de natureza má, como roubar, mentir, romper votos solenes, praticar abusos sexuais, morais ou de poder. Aliás, julgar as atitudes alheias também é uma atitude moralmente neutra: mas o conjunto de intenção e contexto pode transformá-la em justiça ou em calúnia, por exemplo.
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