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Ter uma missão

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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 17/01/21
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Será possível vivermos realmente sem qualquer missão? O que seria da humanidade se os pais não se sentissem responsáveis pelos seus filhos?O jornal O Estado de São Paulo publicou um artigo de seu colunista Júlio Maria, comentando a animação Soul, recém-lançada pela Pixar, que vale a pena ser comentado aqui. Antes de continuar, duas observações importantes. Primeira: esse texto não será sobre o desenho animado, que ainda não vi e não posso comentar, mas sim sobre o artigo de Júlio Maria. Segunda: o artigo é muito interessante e merece servir a um diálogo construtivo, mesmo que se discorde dele.

A tese básica do comentário é que Soul contesta o valor da ideia de missão, colocada já no título como “pilar que segura o capitalismo e as religiões” – como e até que ponto o filme faz mesmo isso é outra questão, que foge à discussão, como dito acima. A missão,  tarefa, meta e responsabilidade da vida, nos condenaria à aflição, à culpa, à angústia, e até mesmo ao suicídio. A tese não é nova, mas precisa ser explicada. Dois exemplos, que não estão no artigo de Júlio Maria, podem ajudar a compreender o problema.

O protagonista do livro Cruzada sem Cruz (São Paulo: Editora Progresso: 1948), de Arthur Koestler, tem um pesadelo, no qual é julgado pelo tribunal da consciência. Lá, um homem que declara ter passado toda a sua vida de forma irresponsável é absolvido, enquanto um outro – que partilhara seu último alimento com um pobre – é condenado porque uma criança havia morrido de fome em sua cidade. A mensagem era clara: nunca estaremos à altura da responsabilidade que a missão nos impõe, perante nossa consciência, estaremos sempre em débito – a não ser que abandonemos qualquer pretensão de ter uma tarefa no mundo.

O outro lado da moeda é bem conhecido e descrito em numerosas obras de ficção: a pessoa que se coloca uma tarefa e, após cumpri-la, sente-se vazio e insatisfeito. Tanto o esmagado por uma responsabilidade à qual nunca conseguirá corresponder quanto o frustrado porque a tarefa cumprida não foi capaz de dar o gosto pela vida ilustram o drama que a missão representa para o ser humano. 

 

Take it easy

Será possível vivermos realmente sem qualquer missão? O que seria da humanidade se os pais não se sentissem responsáveis pelos seus filhos? Se os valentes não se insurgissem contra as injustiças? Se os bons não se dedicassem aos que sofrem? Só um pequeníssimo grupo de afortunados poderia viver de forma despreocupada, sem nenhuma missão. Talvez, então, a saída seria uma coisa intermediária, responsabilizar-se, mas sem se preocupar demais. A língua inglesa cunhou a expressão “take it easy” (“pega leve”, em português), para indicar essa necessidade de não levar muito a sério os problemas da vida.

No Apocalipse, Deus declara aos cristãos de Laodicéia: “Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; quem dera foras frio ou quente! Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca” (Ap 3, 15-16). Os que “pegam leve” podem ser os que mais sofrem, pois acabam sentindo tanto o peso inevitável das responsabilidades quanto um resquício ao menos da culpa nunca eliminada. Substituir a missão pelo prazer ou viver a missão sem sentir-se pressionado pode não ser uma saída para o vazio da vida, mas – pelo contrário – ser exatamente a rota mais curta para chegar ao vazio e à falta de sentido.

Voltando ao livro de Koestler, o protagonista acaba indo para a guerra, contrariando os amigos e uma psicoterapeuta, porque conclui que seria mais feliz vivendo uma vida de sacrifícios por aquilo que acreditava do que vivendo uma vida confortável e segura, mas renunciando a seus ideais.

 

Na sociedade atual

Júlio Maria recoloca a questão da missão num contexto histórico, relembrando sua importância para as religiões e para a mentalidade moderna. Tanto as religiões quanto o capitalismo acabariam por tornar a missão uma imposição sem sentido e sem possibilidade de ser plenamente realizada. Na verdade, a norma social, como celebrada pela tradição, obriga a pessoa a se conformar a certos papeis e assumir certas responsabilidades. Essa conformação é vista, na sociedade moderna, como a matriz de uma vida sufocada por tarefas opressoras e contrárias à plena realização do ser humano. Trata-se de um longo processo histórico de descoberta do “eu” e do próprio direito à felicidade.

Contudo, o diabo, expulso pela porta, entra pela janela, como diz o ditado popular. Agora, a missão não é mais servir à sociedade e ao bem comum, e sim se tornar feliz e realizado. Ser um “vencedor” na vida se tornou uma obrigação. Não há lugar para os fracassados, novos párias de nossa sociedade. E, de fato, o capitalismo e o mercado souberam aproveitar-se muito bem dessa mutação, fazendo com que as pessoas trabalhassem sem descanso para “vencer na vida” e consumissem sem parar para demonstrar seu êxito. As redes sociais se consagraram como passarelas para a alegria e a boa vida, mesmo que nos seus bastidores continue o choro e a amargura.

 

A falta de amor

O grande problema, e aqui está o cerne da questão, é que a missão – assim como sua irmã, a vocação – não realizam a pessoa se não são respostas a um grande amor, um gesto de gratidão que sempre será menor do que o dom recebido. É a grandeza do amor recebido que preenche a lacuna entre o tamanho da missão e nossa incapacidade de realizá-la plenamente, que tira do sacrifício o sentido de sofrimento e o ressignifica como doação, que faz normas e obrigações serem vividas como espaços de realização da própria humanidade.

Mas desaprendemos tanto a amar quanto a sermos amados. Para muitos, o próprio cristianismo parece mais uma realização de fariseus estoicos do que de apóstolos cheios de contradições, mas fascinados pelo amor e pela vida que o Mestre lhes transmitia, dedicados a corresponder à alegria do amor Daquele que havia morrido por eles. Se não testemunhamos a missão como a resposta alegre ao amor, realmente temos que aceitá-la como uma imposição que dificilmente nos realizará – mas então, a vida será penetrada pelo grande vazio, que não vem da imposição de uma missão, mas da falta de um amor.



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