Prefeito emérito fala sobre a liturgia e questiona a contraposição entre o silêncio contemplativo e o microfone ideológicoCrise da liturgia é crise da relação com Deus, afirmou o cardeal Robert Sarah em sua primeira entrevista como prefeito emérito da Congregação para o Culto Divino, cargo a que renunciou por conta da idade de 75 anos.
Em conversa com Matteo Matuzzi, do jornal italiano Il Foglio, o cardeal guineense falou de diversos e relevantes assuntos da Igreja, com ênfase na liturgia.
Confira um resumo:
A renúncia por idade
O cardeal Sarah se declara “feliz e orgulhoso por ter servido a três Papas”: São João Paulo II, Bento XVI e Francisco. De fato, ele trabalhou com eles na Cúria Romana durante mais de vinte anos e resume:
“Tentei ser um servo fiel, obediente e humilde da verdade do Evangelho”.
O trabalho em prol do culto divino
Antes de abordar a crise da liturgia, o prefeito emérito destacou a sua importância como parte do coração da Igreja e da sua razão de ser:
“A Igreja não é uma administração nem uma instituição humana. A Igreja misteriosamente prolonga a presença de Cristo na Terra. A Igreja existe para dar os homens a Deus e para dar Deus aos homens”.
E destacou então o papel crucial da liturgia na Igreja:
“Este é, precisamente, o papel da liturgia: adorar a Deus e comunicar a graça divina às almas”.
Crise da liturgia é crise da relação com Deus
Sarah tratou, na sequência, do “adoecimento litúrgico”:
“Quando a liturgia está doente, toda a Igreja está em perigo, porque a sua relação com Deus não está só debilitada, mas profundamente danificada”.
E exemplificou:
“Em vez de falar de nós mesmos, vamos a Deus! Esta é a mensagem que venho repetindo há anos. Se Deus não está no centro da vida da Igreja, então Ela está em perigo de morte. É por isso que Bento XVI disse que a crise da Igreja é essencialmente uma crise da liturgia, porque é uma crise da relação com Deus”.
Liturgia: silêncio contemplativo ou microfone ideológico
O cardeal africano foi enfático ao afirmar que, se falta foco na contemplação silenciosa durante as celebrações litúrgicas, então a liturgia tende a se diluir em mera modalidade de exposição ideológica:
“Quando o homem permanece em silêncio, ele deixa espaço para Deus. Já quando a liturgia se torna falante, ela se esquece de que a cruz é o seu centro e se organiza em torno do microfone. Todas essas questões são cruciais, porque determinam o lugar que damos a Deus. Infelizmente, elas se transformaram em questões ideológicas”.
Luta entre progressistas e conservadores na Igreja
A partir desta consideração, Sarah comentou sobre conflitos ideológicos no seio da Igreja:
“Hoje, na Igreja, atuamos muitas vezes como se tudo fosse uma questão de política, poder, influência. Há uma imposição injustificada de uma hermenêutica do Vaticano II que rompe totalmente e está irreversivelmente em desacordo com a Tradição. Para mim, tem sido um grande sofrimento testemunhar essas lutas de facções.
Quando falei da orientação litúrgica e do senso do sagrado, me disseram: ‘O senhor se opõe ao Concílio Vaticano II’. Isto é falso! Não acho que a luta entre progressistas e conservadores tenha sentido na Igreja. Essas categorias são políticas e ideológicas. A Igreja não é um campo de luta política. A única coisa que conta é procurar a Deus mais profundamente, encontrá-Lo e ajoelhar-se humildemente para adorá-Lo”.
Polêmica sobre o livro “Do profundo de nosso coração“
Em janeiro de 2020, repercutiu na mídia uma inflada controvérsia sobre a co-autoria do Papa Emérito Bento XVI no livro do cardeal Sarah que, entre outros vários temas, abordava a defesa da preservação do celibato sacerdotal. O livro havia sido divulgado inicialmente como obra conjunta do Papa Emérito e do cardeal, com a exposição da contribuição pessoal de ambos ao debate suscitado pelo Sínodo da Amazônia, em outubro de 2019, a propósito de se ordenarem sacerdotes casados. Acabou sendo esclarecido que, oficialmente, a autoria é do cardeal Sarah, com a contribuição de Bento XVI.
“O Papa Francisco entendeu muito bem e recebeu o livro em que eu tinha trabalhado com Bento XVI, ‘Do profundo de nosso coração‘. Não escondi dele a minha preocupação com as consequências eclesiológicas de se questionar o celibato dos sacerdotes. Quando ele me recebeu, depois da publicação, quando as campanhas da mídia me acusaram de mentir, ele me apoiou e me encorajou. Parece que ele leu e apreciou a cópia autografada que Bento XVI, com a sua delicadeza, tinha enviado a ele”.
Crise na Igreja
Para além da crise da liturgia, Sarah falou de uma crise mais ampla vivida pela Igreja:
“A Igreja vive hoje uma Sexta-Feira Santa. O barco parece estar fazendo água por todo lado. Alguns a traem dentro dela. Penso no drama e nos terríveis crimes dos padres pedófilos. Como é que a missão pode dar fruto se tantas mentiras encobrem a beleza do rosto de Jesus? Outros são tentados a trair quando abandonam o barco para seguir os poderes da moda. Penso nas tentações que acontecem na Alemanha, no caminho sinodal. Pergunta-se o que vai restar do Evangelho se tudo isso chegar ao fim: uma verdadeira apostasia silenciosa.
Mas a vitória de Cristo sempre vem por meio da Cruz. A Igreja tem de ir em direção à Cruz e ao grande silêncio do Sábado Santo. Nós temos que rezar com Maria, ao lado do corpo de Jesus. Velar, rezar, fazer penitência e reparação para podermos proclamar melhor a Vitória do Cristo Ressuscitado”.
Planos pessoais do cardeal
Por fim, o cardeal Robert Sarah também comentou sobre o próprio futuro a serviço da Igreja, mesmo após a sua “aposentadoria” como prefeito da Congregação para o Culto Divino:
“Estou feliz por ter mais tempo para rezar e ler. Continuarei escrevendo, falando e viajando. Aqui em Roma, continuo recebendo padres e fiéis de todo o mundo. Mais do que nunca, a Igreja precisa de bispos que, de modo livre, claro e fiel, falem de Jesus Cristo e dos ensinamentos doutrinários e morais do Seu Evangelho. Pretendo continuar esta missão e até expandi-la. Devo continuar trabalhando a serviço da unidade da Igreja, na verdade e na caridade. Quero humildemente continuar apoiando a reflexão, a oração, a coragem e a fé de tantos cristãos que estão desorientados, confusos e perplexos com as muitas crises que estamos passando agora: crise antropológica, crise cultural, de fé, sacerdotal, moral, mas, acima de tudo, crise do nosso relacionamento com Deus”.
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