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A CPI, a ciência e o realismo cristão

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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 27/06/21
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Um posicionamento cristão deve procurar sempre conhecer as duas partes e o conjunto dos acontecimentos

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, com suas “revelações” (na maioria das vezes apenas confirmações do que já se sabia), suas jogadas políticas e seus lances intempestivos, tem sido o principal foco da mídia brasileira nos últimos tempos. Num dos países com maior número de mortes por Covid-19 no mundo todo, onde as políticas públicas de enfrentamento à pandemia são continuamente questionadas por um lado ou outro do espectro político, acabando julgadas no Supremo Tribunal Federal, todos os esforços para apurar responsabilidades e melhorar a gestão da saúde pública são bem-vindos.

Infelizmente, todas as questões que envolvem o Estado tendem a ser instrumentalizadas nos jogos de poder e espetacularizadas por políticos desejosos de projeção midiática e ganhos eleitorais. Além disso, frequentemente, nesse contexto, existem dúvidas bem fundamentadas sobre a idoneidade tanto dos acusados quanto dos acusadores. Essa situação gera um misto de raiva e frustração, que é compreensível, mas não ajuda a um posicionamento justo e construtivo na resolução dos problemas ou em nosso posicionamento político.

A doutrina social da Igreja não pode responder a perguntas como “as vacinas ou o tratamento precoce são eficazes contra a Covid-19?”, “houve corrupção na compra de vacinas e outros insumos no período da pandemia?”. São questões que dependem de análises científicas e de averiguações policiais. Contudo, a sabedoria da Igreja pode nos ajudar a termos uma postura mais adequada para avaliar as conclusões vindas da ciência, as informações obtidas nas investigações e a própria conduta das personalidades públicas envolvidas.

Durante os depoimentos dados na CPI, frequentemente se falou “em nome da ciência” ou se pediu para que fossem ouvidas “as duas partes da ciência”, como se a informação científica fosse uma questão de posição num espectro político-ideológico. A ciência é um modo de conhecermos a realidade, não o único, mas aquele que se mostrou mais eficiente ao longo da história humana. A própria doutrina católica reconhece o seu valor nesse sentido, inclusive no enfrentamento à pandemia de Covid.

Não existem duas ciências. Contudo, seus resultados se baseiam em dados observados e, caso sejam numéricos, analisados em termos estatísticos. Quando muitos cientistas, em locais diferentes, estudam o mesmo problema, certas conclusões podem diferir das demais. Nesses casos, cabe à comunidade científica se debruçar sobre os resultados diferentes, compará-los, verificar quais são os mais frequentes e quais as eventuais explicações para as discrepâncias observadas. Ao longo dos séculos, foram desenvolvidos métodos rigorosos para realizar essas verificações e os bons cientistas estão capacitados para aplicar esses métodos e dizerem o que, provavelmente, está mais correto.

Esse era o caso, por exemplo, dos tratamentos precoces e do distanciamento social. Alguns resultados pareciam confirmar a eficácia dos tratamentos precoces, mas o conjunto das pesquisas realizadas no mundo mostraram que eles não apresentavam os efeitos prometidos. Os estudos também demonstraram que o distanciamento social não resolvia os problemas, mas com certeza evitava um mal maior. Nesse segundo caso, outra questão importante é a do uso adequado das políticas de distanciamento social. Quanto mais bem feito e consciencioso, mais proteção contra a pandemia e menor seu custo socioeconômico. Essas constatações não são posicionamentos ideológicos, mas a aceitação de nosso melhor instrumento para conhecer a realidade.

A ciência não nos diz o que fazer, apenas nos informa sobre as consequências concretas mais prováveis para nossas ações. A decisão do que fazer é um discernimento ético, que se baseia num conjunto de fatores, inclusive dos dados científicos. O problema do chamado negacionismo é a recusa em aceitar a realidade tal qual ela se apresenta nesse momento. É uma opção moral, ainda que geralmente inconsciente, de colocar a própria opinião ou o próprio desejo acima da realidade – em clara oposição ao realismo que historicamente orientou o pensamento católico.

Nesse sentido, é forçoso reconhecer, o erro do governo não foi ter uma opinião favorável ao tratamento precoce, mas sim colocar opiniões pessoais, defendidas por leigos ou por uma parcela minoritária de médicos, acima das conclusões resultantes de avaliações embasadas nos dados mais completos, tomadas pela maioria dos cientistas especializados nessas questões. Nada impede uma equipe de pesquisadores de continuar fazendo pesquisas com o tratamento precoce, mas o gestor público deve se orientar pelas conclusões mais bem fundamentadas naquele momento. Não se trata de cientificismo, mas de responsabilidade moral frente ao bem comum.

As CPI são um instrumento para que deputados e senadores possam exercer uma de suas funções, como representantes do povo, que é a de fiscalizar a administração pública. Nesse sentido, a existência de uma CPI já indica que o sistema não funcionou adequadamente. Em primeiro lugar, porque existe uma dúvida minimamente fundamentada sobre o desempenho do governo. Em segundo lugar, porque representantes do povo terão que desempenhar um papel próprio da autoridade judicial – e não do legislativo.

Essa “disfuncionalidade” se torna evidente na tomada de depoimentos nas CPI. Os deputados e senadores não estão familiarizados com interrogatórios e algumas vezes parecem mais estar se apresentando num palanque do que inquirindo uma testemunha. Acusados de corrupção se apresentam como defensores da moralidade pública ao interrogar os depoentes. A truculência das perguntas muda em função do sexo e da posição política do interrogado.

Daí a frequente comparação entre as CPI e um “circo”, um espetáculo para o público, e não uma investigação de responsabilidades. Trata-se de uma limitação inerente ao sistema democrático em seu conjunto. É justo trabalhar para que o sistema como um todo se mostre mais eficiente, demonstrando mais seriedade e construindo melhor o bem comum. Contudo, não se pode usar essas fragilidades como justificativa para ignorar o trabalho de fiscalização do poder público ou para pactuar com a impunidade.

Diante dessa situação, como a sabedoria cristã convida a nos posicionarmos? Em primeiro lugar, buscar conhecer a realidade e não as opiniões. Um perigo latente é o de se orientar pela raiva e não pela razão. Um colunista bastante conhecido defendeu um dos envolvidos nas polêmicas sobre a aquisição superfaturada da Covaxin dizendo que sua veemência era um sinal claro de que dizia a verdade. Ora, esse é tipicamente um argumento irracional. Significa dizer que se um mentiroso for veemente, suas declarações se tornarão verdadeiras. A questão, no exemplo, não é a inocência ou a culpa do político citado, mas a irracionalidade do argumento e o apoio velado a discursos truculentos. Também temos de nos precaver dos fatos descontextualizados. De ambos os lados é comum se tomar uma informação isolada e usá-la para validar toda uma situação. Um posicionamento cristão deve procurar sempre conhecer as duas partes e o conjunto dos acontecimentos.

O resultado desse processo de discernimento se manifestará quando tivermos que nos posicionar. Pode ser em conversas nas redes sociais, numa consulta pública, no convite a uma manifestação, nas próximas eleições. Somos chamados a ter um olhar realista diante dos acontecimentos, reconhecendo o que mais provavelmente constrói o bem comum, e não nos deixarmos enganar por discursos demagógicos ou ostentações de idoneidade indevidas.