Nas últimas semanas, assistimos a uma verdadeira batalha pelo voto impresso. A polarização partidária levou a uma certa histeria de ambas as partes. Nos Estados Unidos, onde o voto é em papel, os partidários de Trump alegam fraude nas eleições e pediram recontagens, mas isso não mudou o resultado do pleito. O voto impresso, por si só, não impede crimes eleitorais. Contudo, o fato de muitos se sentirem desconfortáveis com o sistema eletrônico, mesmo com reiteradas explicações sobre a lisura do processo, não pode ser descartado. É justo sempre buscar o aperfeiçoamento dos mecanismos de fiscalização, seja com o voto físico, seja com o eletrônico, seja com um sistema híbrido.
Contudo, meu tema hoje não é esse, mas sim uma decorrência desse debate. Muitos tem repetido que “não dá para provar que houve fraude com as urnas eletrônicas, mas também não dá para provar que não houve”. A frase – apesar de verdadeira – pode induzir a uma postura relativista, típica desses tempos de pós-verdade. Na posição justa, de atenção e cuidado, leva a uma vigilância constante. Na posição relativista, leva à conclusão que, se não é possível provar uma coisa ou outra, cada um pode acreditar no que quiser...
A estrutura formal de “não dá para provar que houve fraude com as urnas eletrônicas, mas também não dá para provar que não houve” equivale a “não dá para provar a existência de fadas e duendes, mas também não dá para provar que não existem em algum lugar” ou “não dá para provar a existência de vida eterna, mas também não dá para provar que tudo acaba com a morte”. Se a lógica é a mesma, o valor cultural de cada uma dessas frases é imensamente diferente. O que as torna tão diferentes é a confiança que depositamos nas pessoas que defendem cada uma dessas posições.
Todo conhecimento humano se baseia numa posição de fé. O mais racional e cético entre os cientistas não pode dizer que fez experimentos para verificar todas as afirmações nas quais acredita. A imensa maioria de seus conhecimentos técnicos foi adquirida na leitura de livros e artigos especializados, a partir da fé de não estar sendo enganado por aqueles autores. Essa fé não é arbitrária. Fundamenta-se em evidências acumuladas ao longo da vida. Por exemplo, cada vez que acendemos uma lâmpada em nossa casa nos convencemos, inconscientemente, que a eletricidade existe, que os cientistas e técnicos que trabalham com ela não estão nos enganando. Quando acreditamos que a Terra é redonda nos baseamos em dados menos evidentes, mas o acúmulo de informações que vão nessa direção (como as viagens intercontinentais, as muitas pessoas que deram a volta ao mundo e as imagens espaciais) levam a maioria a acreditar que realmente a Terra é redonda.
A confiança nos artigos científicos ou jornalísticos não é exatamente no autor específico, mas em sistemas sociais de verificação das informações. No caso dos textos científicos, outros cientistas com capacitação equivalente ou superior à dos autores revisam os dados e as conclusões, para avaliar sua pertinência. No caso de jornais e revistas, é a própria competição entre os veículos, cada um tentando se mostrar mais exato e confiável do que o outro, e o direito dos eventualmente caluniados de processar a publicação que nos dão confiança, mesmo que relativa, nas informações.
Afirmações de caráter moral ou religioso passam por outro tipo de certificação. Acreditamos em função da bondade e do amor que algumas pessoas, como nossos pais, demonstraram ter por nós. Cremos que não irão mentir para nós, pois sempre procuraram o nosso bem e demonstraram sabedoria. Por isso, o que dizem deve ser verdadeiro.
Outras vezes, é só a influência social que nos leva a acreditar. A maior parte dos preconceitos sociais, sejam eles relativos a raça, gênero, instrução ou religião, são afirmados em função de um poder cultural que não admite contestação. No coronelismo tradicional do Brasil, os eleitores votavam segundo a indicação do líder político local, porque acreditavam nele (ou eram obrigados a agir como se acreditassem) – é o chamado “voto de cabresto”.
Assim, em certas ocasiões, acreditamos numa pessoa que não é tão boa ou tão sábia como imaginamos – e somos enganados por ela ou por meio dela. Noutras, acreditamos apenas pelo peso da autoridade social, sem nos darmos conta de que as crenças que nos estão sendo propostas são falsas. Costumamos estar sempre atentos, e até um pouco atemorizados, com a possibilidade de que o poder do Estado, da mídia ou do dinheiro determinem nosso modo de pensar. Mas frequentemente somos crédulos quando temos simpatia por uma pessoa ou quando suas ideias são semelhantes às nossas.
Um início de dúvida nasce em nosso coração quando percebemos uma discrepância entre o que experimentamos e o que nos é apresentado como valor. A moral sexual é um caso típico, sob enfoques exatamente opostos. Muitos duvidam da moral tradicional em relação à sexualidade por verem que uma experiência de prazer lhes parece negada. Outros duvidam da moderna liberdade sexual por verem que as pessoas liberadas também não parecem felizes ou realizadas.
Essa dúvida pode encaminhar para um justo equilíbrio de conduta, que concilia valores morais e liberdade. Mas pode se tornar apenas insegurança e mágoa contra os proponentes de uma posição ou outra – e aí mora o perigo. Essa desconfiança ressentida frequentemente nos leva a um negacionismo irracional, que avalia as informações em função de um preconceito para com o informante e não com base nos dados objetivos que estão sendo apresentados e nos sistemas de verificação disponíveis.
Termos genéricos como “a mídia”, “os políticos”, “a esquerda” ou “a direita” expõem uma outra fonte de descrédito: não sabemos exatamente o que está acontecendo, quem está no comando das ações, como as coisas funcionam em nossa complexa sociedade atual. A desconfiança nasce do compreensível medo do desconhecido. A desconfiança com relação à urna eletrônica não deixa de ter um pouco desse aspecto: na contagem dos votos em papel, vemos a apuração e supomos entender seu mecanismo. Na urna eletrônica, não vemos a contagem e nem sabemos como o sistema funciona. Mesmo que nos digam que não há fraude, nos sentimos inseguros diante de um processo que não conhecemos.
Uma justa descrença nasce da incoerência, das contradições e até dos sinais de desonestidade dos proponentes de certas ideias. Os políticos brasileiros, sujeitos a longas séries de denúncias de corrupção, e até mesmo nossos magistrados, que frequentemente divergem entre si e parecem decidir mais a partir de convicções ideológicas do que de normas legais, são exemplos muito evidentes dessa dúvida que nasce da própria conduta pública das pessoas.
Existem caminhos para superar essas desconfianças. Como o texto já está longo, veremos esses caminhos no próximo artigo.