Não há quem, na vida, nunca tenha se sentido injustiçado. Todos sofremos com pequenas ou grandes injustiças. Se olharmos para os que estão pior, vítimas inocentes de situações que não criaram para si, como os escravos negros do passado, os cristãos ainda hoje perseguidos até a morte em muitos países só por professarem a sua fé, as etnias vítimas de genocídio ou mesmo as crianças mais pobres em nossa sociedade, nos consideraremos afortunados por nossos padecimentos não serem como os deles. Mas, se olharmos para o mundo ideal pelo qual aspiramos, pela dignidade que sabemos ser inerente a todo ser humano, também as injustiças que sofremos ou presenciamos diretamente, sejam grandes ou pequenas, se tornam inadmissíveis.
Frequentemente essa situação gera, em nós, sentimentos de frustração e ira, explorados pelos formadores de opinião, gerando o que poderíamos chamar de uma “cultura do ressentimento”, um modo de julgar o mundo que não nasce do amor cristão que gostaríamos de viver, mas de um lamento raivoso que nos afasta de Cristo. É impressionante como essa mentalidade afeta até mesmo cristãos que são referência por sua erudição ou sabedoria.
Uma das principais e mais nefastas características dos discursos ressentidos é dar mais atenção à busca por culpados do que por soluções para os problemas. Podem apontar culpados reais, mas não propõem caminhos para superar as dificuldades. Deixam a impressão, quase sempre falsa, que bastaria eliminar os pretensos culpados para acabar com os males. Contudo, a vida não é assim. Erros ideológicos crescem a partir de situações objetivas. Sem alternativas para enfrentar os problemas, falsas soluções continuarão a prosperar. Darei dois exemplos, comuns em lados opostos dos debates culturais internos à própria Igreja, para mostrar que o perigo está em todo lugar.
Alguns anos atrás, fui convidado a assistir uma mesa-redonda sobre ideologia de gênero nas escolas. Os palestrantes mostraram como essa ideologia havia se tornado hegemônica em vários ambientes culturais e como omitia dados até óbvios de uma antropologia sadia e realista. Ao final, uma diretora de escola pública comentou que tinha alguns alunos sofrendo “bullying” porque exibiam comportamentos homossexuais ou porque tinham pais homossexuais. Não queria estimular a ideologia de gênero em sua escola, mas simplesmente condená-la poderia aumentar o bullying. Os palestrantes haviam apontado problemas e mecanismos de hegemonia ideológica reais, mas não tinham fornecido recursos adequados para que os professores superassem os problemas que encontravam em sala de aula.
Em outra ocasião, fui procurado por um jornalista que sempre escrevia sobre Igreja. Suas fontes eram militantes católicos identificados como progressistas e de esquerda. Haviam explicado a ele que a Igreja não conseguia responder aos desafios da atualidade e estava enfraquecendo sua posição cultural por causa das autoridades eclesiais conservadoras. Mas, o jornalista observava que a maioria dos católicos brasileiros que deixaram a Igreja se converteram ao neopentecostalismo evangélico, que é mais conservador que o catolicismo. A resposta que haviam lhe dado não correspondia aos dados que encontrava na realidade. Hoje em dia, o próprio Papa Francisco, tido como progressista e renovador, tem continuamente apontado para a necessidade da Igreja estar atenta e “sintonizada”, por assim dizer, com a religiosidade e a alma popular – mas essa questão muitas vezes escapa aos que associam todos os problemas eclesiais ao conservadorismo.
Com esses dois exemplos não quero acusar ninguém em particular, nem deixar de reconhecer problemas e culpas que podem realmente existir, de um lado ou de outro. Quero apenas mostrar que o ressentimento contra ideólogos e autoridades não resolve os problemas reais que precisam ser superados.
A cultura do ressentimento oferece a raiva e o conflito, não o amor e a reconciliação. Basta ver as espirais de discursos cada vez mais agressivos e extremistas que inundam nossas redes sociais. A própria verdade, que se desejava defender no início, acaba sendo sacrificada por uma ideologia de pós-verdade: se os outros mentem, nós também podemos “carregar as tintas” para mostrar que estamos certos. Assim, acabamos nos tornando tão mentirosos quanto os outros.
Em certa ocasião convidei um grupo de jovens universitários católicos para um encontro com um professor de filosofia, também católico, muito sério e bem-preparado. No final do encontro, um jovem comentou, admirado, como meu amigo havia conseguido contestar os argumentos de outros pensadores, de forma muito crítica, mas sem nunca ser agressivo ou menosprezá-los. Pelo contrário, mostrou até uma simpatia humana para com todos os autores comentados.
Aqueles jovens haviam sido formados numa cultura do ressentimento, que confundia a justa criticidade com a agressividade e o escárnio. A sabedoria cristã, desde os primeiros tempos, não é assim. A verdade se manifesta na serenidade, na empatia e na acolhida que nascem da certeza de que a verdade e o amor estão juntos, que o mais sábio é corrigir com amor, não destruir com arrogância.
Procurar culpados têm sua razão de ser, mas não é o melhor caminho para superar as dificuldades. A pergunta justa é “o que está de fato ocorrendo para que este mal aconteça?”. Os discursos ideológicos se valem de problemas reais, já existentes, para se afirmarem. Enfrentar ideologias sem atacar suas origens concretas equivale a “enxugar gelo”. As ideologias e os erros continuam a aparecer, por mais que os combatamos, se não enfrentamos esses problemas reais dos quais se alimentam.
Os cristãos sempre foram vítimas do poder, da arrogância e da mentira. Mesmo no mais cristão dos mundos, os santos sofreram nas mãos dos maus cristãos. Não podemos, por causa disso, nos igualarmos aos que desejam nos cancelar e até perseguir. Nessa luta, pois não deixa de ser uma batalha cultural, teremos perdido não só o confronto, mas também nossa própria alma, se passarmos a nos comportar a partir do ressentimento e não do amor cristão.
Na mais antiga obra apologética cristã, a Carta a Diogneto, escrita ainda no tempo em que os cristãos eram martirizados e mortos nas arenas romanas, está escrito: “Assim como a alma está no corpo, assim estão os cristãos no mundo [...] A alma ama a carne e os membros que a odeiam; também os cristãos amam aqueles que os odeiam [...] Tal é o posto que Deus lhes determinou, e não lhes é lícito dele desertar”. Os cristãos não nasceram para o gueto do ressentimento, mas para o espaço sem fronteiras do amor.