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A boca fala do que o coração está cheio

Beautiful magnolia tree

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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 28/05/23
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Quando deixamos de contemplar a beleza, que é fruto e manifestação do amor de Deus, a feiura e o mal fermentam e crescem em nosso coração, ocupando-o e transbordando em nossas palavras

Algum tempo atrás, eu percorria com alguns alunos uma trilha por um local onde a natureza era particularmente bela. De repente, uma criança, próxima a nós, exclamou: “que coisa feia!”. Evidentemente, chamou a atenção de todos e continuou dizendo: “vejam quanto lixo deixaram na trilha”. A observação suscitou uma série de elogios à educação do menino, à sua atenção para com o meio ambiente e o descarte adequado do lixo. Contudo, havia ali também um problema: diante da beleza da Criação, o que chamou a atenção foi a feiura dos erros humanos.

O episódio me veio à memória recentemente, num concerto de música sacra. Terminada a apresentação, foi dada a palavra a um sacerdote, homem de erudição e sabedoria comprovadas. Após um rápido elogio aos músicos, ele continuou falando sobre o “lixo cultural” que é frequentemente considerado arte nos dias de hoje. Tanto o menino quanto o sacerdote estavam focados na feiura e não na beleza. Suas observações, tanto sobre o lixo material na trilha quanto sobre o lixo imaterial em nosso meio artístico eram justas, mas funcionavam como um anteparo, que se colocava acima da beleza que Deus lhes oferecia, por meio da natureza ou por meio da criatividade humana.

O que está crescendo em nosso coração?

“Nada há, fora do homem, que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai dele isso é que contamina o homem. [...] Porque do interior do coração dos homens saem os maus pensamentos” (Mc 7, 15-21) e “a boca fala do que o coração está cheio” (Mt 12, 34), constata Jesus em sua pregação. Segundo C.S. Lewis, o diabo ensina a seu aprendiz que não precisa fazer com que as pessoas o sigam, basta que elas olhem mais para a sua maldade que para a bondade de Deus, para que acabem se tornando maus e se afastando do Pai (Cartas de Um Diabo a Seu Aprendiz. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017).

Quando deixamos de contemplar a beleza, que é fruto e manifestação do amor de Deus, a feiura e o mal fermentam e crescem em nosso coração, ocupando-o e transbordando em nossas palavras. Muitos influenciadores e mídias sociais padecem desse problema. Estão tão focados em denunciar as mazelas do mundo que deixam de anunciar a beleza que nos foi dada por Deus. Mesmo que com boa intenção, nos afastam da Graça, em seu afã de nos proteger da desgraça.

A meta justa é sempre necessária

Alguns dirão que, num mundo como o nosso, não se pode ficar ingenuamente focados na beleza e no bem. É necessário estar atento aos males que nos espreitam na realidade, nas ideologias, nas más intenções dos poderosos, na exploração e na opressão que vitimam fracos e desamparados. Essa atenção para com os males do mundo é realmente necessária, mas como superar esses problemas sem ter uma justa visão do bem? Sem o olhar fixo nessa meta, acabamos por nos perder nos vários descaminhos que sutilmente urdidos pelo mal.

Não se trata de uma crença irracional na força do pensamento positivo, de uma fuga ilusória da realidade. Quantos casamentos que poderiam ser felizes não se tornaram infelizes porque o casal desaprendeu a ver o fascínio que originalmente encontraram um no outro e passaram a ver só seus defeitos? Quantas ditadura não floresceram porque os revolucionários, em seu afã em derrubar um governo iniquo, não perceberam que estavam patrocinando outro semelhante? No micro e no macro, necessitamos da contemplação da beleza e do amor, que preenche o coração e se torna discernimento intelectual.

A verdadeira beleza consola e ilumina o coração

Alguns dirão, ainda, que a contemplação da beleza não é possível para aqueles que mais sofrem, que este seria um exercício estético vedado aos pobres, aos excluídos, aos doentes e aos sofredores de todos os tipos. Em primeiro lugar, a contemplação da verdadeira beleza não é mera questão de aparências e formas. Descobrimos a verdadeira beleza quando encontramos aquilo que corresponde a nosso coração, àquele desejo mais profundo que não conseguimos nem mesmo entender antes do encontro – como cada um de nós só sabe realmente como é a pessoa amada depois de conviver com ela.

Essa beleza muitas vezes transparece nas piores situações, rebrilha nos locais mais improváveis. Por isso, o sofrimento não é uma objeção para encontrá-la – ainda que sua descoberta possa ser mais difícil em situações-limite. Nesse sentido, um frequente paradoxo: as pessoas que vivem com mais conforto e recursos, que teriam mais acesso ao conhecimento da verdadeira beleza, são muitas vezes aquelas que têm o coração mais cheio de lixo, que têm mais dificuldade de compreender o amor.

Se nosso irmão sofre, nosso dever solidário de ajudá-lo a encontrar o amor e a beleza é ainda maior. Isso não quer dizer negar as dificuldades ou as muitas transformações radicais que nossa sociedade precisa para eliminar tantos sofrimentos nascidos das mazelas humanas. Contudo, aquele que sofre não pode esperar um amanhã ideal para encontrar a beleza. Ela tem que se apresentar ainda hoje, para dar ao coração dolorido a força de lutar por uma amanhã melhor.

“A boca fala do que o coração está cheio” ... Que as nossas bocas não deixem de condenar, indignadas, os malfeitos do mundo; mas também sejam, antes de tudo, anunciadoras da verdadeira beleza que vem do Amor.