No artigo anterior, vimos que os dados do Censo de 2022 apontam para a queda da fertilidade das famílias brasileiras, isso é, á redução do número de filhos por família. Esse fato assusta os formuladores de políticas públicas porque muda tanto o perfil do crescimento econômico quanto as necessidades sociais do País. Com população mais envelhecida, um país depende mais do crescimento da produtividade do trabalhador para se desenvolver economicamente. O foco das suas políticas sociais muda, deixando de se concentrar nos jovens e passando a se concentrar nos idosos.
Tudo isso afeta diretamente a vida das famílias – que são, de certa forma, a causa do problema. As taxas de natalidade declinam porque os casais não querem ter filhos. Muitos querem ver aí simplesmente um problema de individualismo e ideologização dos adultos atuais, mas o problema é mais complexo e tem raízes profundas, que devem ser consideradas.
A necessidade de garantir a reprodução social dos jovens
A cada geração, existe não apenas uma reprodução biológica, mas também uma reprodução social dos membros da família. Todos queremos que nossos filhos possam, no mínimo, levar uma vida digna e com condições iguais às nossas. Nenhum pai ou mãe se sentiria bem sabendo que seus filhos estão tendo menos conforto e menos oportunidades do que eles próprios tiveram em suas vidas.
Esse desejo de dar aos próprios filhos ao menos aquilo que receberam dos pais não é sinal de individualismo ou mesmo de consumismo. Contudo, em nossa sociedade, passa cada vez mais por um aumento continuo do poder de consumo da família. No passado, o filho de um agricultor precisava de muito pouco para poder se tornar um agricultor igual ao pai. Hoje, o filho de um engenheiro vai precisar de muitos recursos para se educar e poder ser um engenheiro igual ao pai. Quanto mais tecnológica se torna a sociedade, mais recursos a criança e o jovem demandam para poderem se desenvolver integralmente e ocupar lugares sociais semelhantes aos de seus pais. E isso gera, evidentemente, uma pressão econômica sobre a família.
A situação da mulher também mudou bastante – e nem sempre os desafios associados a essas mudanças são percebidos. Ter uma profissão deixou de ser um privilégio masculino e as mulheres entraram no mercado de trabalho e procuram se realizar profissionalmente assim como os homens. Isso é ótimo, só que se torna cada vez mais difícil sustentar a família apenas com um provedor. Para a maior parte das famílias, os dois salários são necessários para garantir vida digna – pensando, por vida digna, em ao menos garantir as condições para que os filhos tenham as mesmas oportunidades dos pais.
Antes de censurarmos ideologias materialistas e individualistas ou egoísmos pessoais, temos que atentar para um grande problema que pesa sobre as mulheres. A maternidade foi tratada, ao longo da história, como um “nobre sacrifício” da mulher – “ser mãe é padecer no paraíso”, como diz o ditado popular – sem que se contemplasse a necessidade de seu desenvolvimento integral como pessoa. A maternidade, ao invés de uma doação pela qual se opta, foi tratada como um sacrifício ao qual não se podia escapar. A ideia de uma conciliação harmônica entre vida pessoal e familiar, trabalho e maternidade, não foi nem cultivada, nem adequadamente trabalhada, em grande parte da população. Desnecessário dizer que os maridos só agora estão se dando conta das aspirações de suas esposas e de suas obrigações perante a família. Sob esse aspecto, temos que reconhecer que houve (e continua havendo, infelizmente) falta de condições para um desenvolvimento humano integral das mulheres enquanto mães.
Tudo isso cria um “caldo de cultura” adequado para as piores ideologias. Mas não adianta nada censurar essas ideologias sem ajudar a superar as dificuldades objetivas das quais elas se alimentam
Muitos desafios para as famílias
As famílias precisam do apoio do Estado, com políticas públicas adequadas e eficientes para enfrentar suas dificuldades. A história recente tem mostrado que não é possível dar boas soluções aos problemas das famílias, particularmente daquelas mais fragilizadas economicamente, sem um apoio do Estado. Isso não implica numa estatização da vida familiar, como alguns querem, numa situação onde a liberdade e a autonomia das famílias são sacrificadas para que o Estado atenda a suas necessidades básicas. Pelo contrário, a ação do Estado deve visar a liberdade e a autodeterminação das famílias, sua capacidade de realizar seu projeto de vida com dignidade também no plano material. Como isso será feito, se diretamente por ação de órgãos governamentais, se por meio de organizações sociais ou mesmo por empresas realmente focadas no bem comum, dependerá da história de cada realidade e dos recursos efetivamente disponíveis. Mas vale enumerar algumas necessidades mais evidentes.
Em primeiro lugar, saúde digna para todos. O Sistema Único de Saúde brasileiro é uma grande realização social de nosso País. Contudo, enfrentamos grandes dificuldades em garantir o atendimento digno para todos. O crescimento dos planos de saúde pagos cria uma grande pressão econômica sobre as famílias, que só poderá ser minimizada, nas condições históricas da saúde no Brasil, com a melhoria do atendimento público. Paralelamente, enfrentamos o desafio de uma educação de qualidade para todos. Nossas escolas formam mal, tem evasão elevada e, para a classe média, custam caro. Saúde e educação são dois grandes obstáculos para as famílias crescerem e terem mais filhos – e representam desafios concretos, que não podem ser resolvidos apenas com discursos ou boas intenções, implicam em políticas públicas adequadas e/ou uma condição de vida favorável das famílias (maior poder aquisitivo ou facilidades tais como apoio de parentes ou condições de trabalho particularmente favoráveis).
O ambiente de trabalho, na maior parte dos casos, também não colabora para o crescimento das famílias. Mulheres em idade fértil são muitas vezes preteridas nos empregos, não se pensa adequadamente em políticas de pessoal pensadas para que os homens participem mais na educação dos filhos, o home office (que ajuda os pais a ficarem perto dos filhos) é uma realidade que engatinha no País, em grande parte sob o impulso do período da pandemia.
Por fim, o cuidado com os anciãos e com as pessoas com incapacidades é um problema no Brasil. Em teoria, essa deveria ser uma responsabilidade compartilhada entre a família e o Estado, mas muitas vezes isso não acontece. Particularmente para as famílias de baixa renda, mas também para as de classe média, ter uma pessoa dependente em casa se torna um peso difícil de administrar – e certas concepções ideológicas, até bem-intencionadas, costumam fazer mais mal do que bem para a gestão das políticas públicas.
A presença social da Igreja pode ser de grande ajuda em todas essas situações, mas esse é um tema para o terceiro é último artigo dessa série.