O desafio do estudo bíblico
A Bíblia é Palavra de Deus, um diálogo entre o criador e sua criatura. Nessa dinâmica, podemos aplicar a lógica tradicional do diálogo: informa, provoca mútuo conhecimento e impele à ação. É como uma carta de amor, capaz de ser devidamente entendida somente pelos namorados, emitente e destinatários do escrito. Nesse sentido, só quem tem fé, quem tem uma relação com Deus pode entendê-la de maneira autêntica. A fé é essencial para a leitura da Bíblia e, paralelamente, ela aumenta à medida que se lê. Um cientista sem fé nunca poderá tirar da Bíblia aquilo que nela encontra um fiel.
Durante muito tempo as Sagradas Escrituras estiveram longe do povo, especialmente no contexto católico. A Reforma protagonizada por Lutero, há cerca de 500 anos, usou a Bíblia como um instrumento para o ‘combate’: os protestantes acreditavam que dar a Bíblia ao povo era a solução para restaurar a autêntica vida cristã. A contrarreforma, promovida pelo mundo católico, exagerou de maneira oposta, preservando a Bíblia do ‘assalto’ popular e a isolou, colocando-a quase exclusivamente no púlpito. Dessa forma ficou, durante ao menos três séculos, bastante inacessível à maioria dos católicos. Situação que começou a se inverter somente há poucas décadas, certamente graças também à promoção do estudo e do seu uso por parte das comunidades protestantes, em primeiro lugar, e, ultimamente, pelas evangélicas. Hoje estamos muito felizes que tantas comunidades buscam aprofundar a Palavra de Deus, desejosas de adquirir instrumentos para poder ler de modo sóbrio, sem se deixarem levar pelo fundamentalismo religioso.
Quem abre a Bíblia e a lê está fazendo exegese, está interpretando e buscando entender o que nela está escrito. Esse é o primeiro estágio no contato com a Bíblia. Mas uma fé verdadeira busca entender e não se contenta com um primeiro passo. Para ir além, é necessário estudo, é necessária uma metodologia que pode ser adquirida de muitas maneiras. O mundo digital pode representar, com um correto discernimento, inúmeras oportunidades. O site abiblia.org representa um desses instrumentos, que nasceu há cerca de 20 anos, respondendo a perguntas dos leitores, de maneira muito popular, mas com uma base na formação científica, que tivemos a oportunidade de receber em Jerusalém e em Roma, e na vida eclesial que vivemos.
Os livros da Bíblia foram escritos há muito tempo e os seus escritores, inspirados pelo Espírito Santo, são verdadeiros autores. Não é fácil entender todas as lógicas do texto Bíblico: a mentalidade, a geografia, as imagens e os símbolos que nela encontramos são tomados de uma realidade quotidiana profundamente diferente da nossa. Além disso, a língua original é muito distante do nosso português. Por isso a mediação é importante. Um elemento básico é ter em mãos uma boa edição da Bíblia, um trabalho atual, feito por uma equipe de exegetas. Ignore os comentários que dizem que a Bíblia deve conter somente o texto bíblico. As notas são muito valiosas e ajudam a entender melhor o que se lê. Boas edições, apresentam uma introdução de poucas páginas antes de cada livro, muito útil para contextualizar o livro e explicar a mensagem. Apêndices no final da edição também podem ajudar, como por exemplo uma linha cronológica da história de Israel. Obviamente, um ulterior degrau é a leitura de livros de introdução geral à Bíblia e outros que explicam de maneira detalhada cada livro. Há também muita formação disponível, seja online seja nas comunidades. Por exemplo, em 26 de agosto de 2023 estaremos juntos em uma iniciativa promovida pelos mosteiros camaldolenses brasileiros da Transfiguração e da Encarnação, em parceria com a Faculdade de Filosofia e Teologia Paulo VI, da Diocese de Mogi das Cruzes e o Núcleo Fé e Cultura da arquidiocese de São Paulo. Vamos passar o dia conversando sobre a Bíblia. O Encontro será presencial e para inscrições e maiores informações, escrever para o e-mail: encontroscamaldolenses@gmail.com
Por onde começar a leitura da Bíblia?
Na Bíblia há livros mais simples e outros mais difíceis de entender. Uma boa estratégia de leitura é passar do simples ao complexo. São facilmente legíveis os textos narrativos, que contam histórias, que têm um enredo a seguir; seria bom começar com esses textos. Por exemplo, falando de Antigo Testamento, é possível começar com Gênesis e continuar com o Êxodo, pulando os livros seguintes que falam particularmente das leis. Siga então com Josué e Juízes. Em seguida, uma boa sugestão é a de ler os bonitos livrinhos de Rute, Ester e Tobias e então continuar com os dois livros de Samuel. Tendo lido estes, você poderia ler um dos profetas, quem sabe Oseias. Viriam, em sequência, os livros poéticos (Cântico dos Cânticos) e aqueles de oração (Salmos). Se o foco é o Novo Testamento, leia um evangelho. O mais curto e antigo é aquele Segundo Marcos. Depois, certamente você não se cansará de ler as histórias da primeira comunidade cristã contada por Lucas nos Atos dos Apóstolos. Tendo lido esses livros, siga o seu interesse. Não se preocupe com a ordem da leitura.
Se por um lado a Bíblia ganhou muitos adeptos dentro do mundo cristão, por outro há muito ceticismo em relação a ela. O estudo científico levou muitos a questionarem a sua lógica e colocarem em xeque a sua verdade. Contrapondo essa crítica, outros se protegem atrás de trincheiras afirmando princípios fundamentalistas e defendem, com unhas e dentes, a exatidão de quanto está escrito na Bíblia. Um judeu ou cristão radical nunca vai aceitar a teoria da evolução do ser humano, que não é conforme à narração da criação contada pelo livro do Gênesis. Há inclusive muitas pessoas que ocupam posição de liderança que têm dificuldade em acompanhar os fiéis a entender a verdade da Bíblia e da revelação. De qualquer forma, temos que afirmar constantemente, seguindo o magistério da Igreja, que tudo o que a Bíblia diz é verdadeiro. Contudo, estamos falando de uma verdade para as nossas vidas, mas não necessariamente de uma verdade científica. Não precisamos ter medo de afirmar que nem tudo o que está escrito na Bíblia, como se entende a crônica histórica hoje, é exato. Essa afirmação não compromete em nada a autoridade das Escrituras, mas apenas revela a sua natureza, que não é a de ser uma crônica em termos modernos ou um livro científico, mas transmitir para nós o sentido que o autor inspirado descobriu nos eventos que marcaram a vida da humanidade, em geral, e do povo de Israel, em particular. Essas verdades transmitidas não são meras descobertas humanas, mas a vontade de Deus revelada para nós ainda hoje.
Não tenha medo de abrir a Bíblia e se deixar levar pela curiosidade que suscita. Estude a Bíblia e a sua fé se aprofundará.