O mundo atual está enfrentando mudanças radicais, grandes alterações climáticas, migrações de milhões de pessoas que fogem das guerras, da fome, da violência. As pessoas estão cada vez mais sozinhas, a família muitas vezes é fonte de risco, ao invés de ser proteção para as crianças e jovens. Quem tem coragem de se casar? E de ter filhos? As pandemias são globais. A destruição de um habitat como a Amazônia, por exemplo, afeta o mundo inteiro. A terra, os oceanos, a atmosfera estão cobertos de dejetos industriais, plásticos, lixo, etc. A depressão, as doenças psiquiátricas, nunca foram tão frequentes, e a isso acompanha a venda de remédios para a saúde mental – de longe os mais vendidos. Muitos se perguntam: será que estamos caminhando para um fim?
É nesse contexto, e a partir dessa realidade que temos diante dos olhos, que acreditamos valer a pena debruçar-se sobre o modo de viver de um grupo de pessoas, existente desde tempos imemoriais e presente em todas as grandes religiões: o monaquismo. Talvez, pela própria particularidade dessa vida e pela sua originalidade, ela possa contribuir para oferecer alternativas e pistas à sociedade contemporânea. E que contribuição ao mundo atual a experiência monástica poderia trazer se não a laboriosa atenção de buscar continuamente a Deus pedindo várias vezes na liturgia diária: “Deus vinde em nosso auxílio, Senhor socorrei-nos sem demora”?
Este artigo deseja oferecer nossa pequena contribuição, em especial, à descoberta que a vida é e precisa ser essencialmente litúrgica; pois a liturgia é uma escola de vida indispensável.
O ritmo do tempo monástico e seu horizonte espiritual
A vida monástica é profundamente marcada pelo ritmo da liturgia das horas e da celebração eucarística, ao longo do dia, da semana e do ano. O lema “ora et labora” - com toda a variedade das aplicações que se encontram nas diversas tradições - interpreta bem o horizonte da vida dos monges e das monjas, centrado sobre a primazia de Deus, fortemente sublinhada pela dúplice afirmação da Regra de São Bento (RB): “Nada antepor ao amor de Cristo” (4, 21 e 72,11); “Nada antepor ao Opus Dei/oficio divino” (43,3). Estas afirmações estão em relação uma à outra, como as duas faces da mesma medalha. O horizonte de vida do monge e da monja, que São Bento acompanha com carinho e sabedoria de pai, em todas suas potencialidades e fraquezas humanas, resulta totalmente direcionado para Cristo.
A expressão Opus Dei, habitualmente usada para indicar o Oficio divino ou Liturgia das horas, na realidade tem um duplo sentido. O primeiro destaca o agir de Deus, fonte e guardião da vida, na criação e na história, assim como na vida pessoal de cada um, em vista da nossa salvação e da nossa participação à sua própria vida. Reconhecer na fé a iniciativa gratuita e fiel de Deus, manifestada em Jesus, e responder a ele com gratidão e amor, é “cumprir a obra de Deus” à qual é chamado todo verdadeiro discípulo (cf Jo 8,27-28).
O segundo sentido indica o serviço cultual, realizado pela igreja e pela comunidade monástica para honrar o Senhor, ao lembrar com gratidão e alegria as maravilhas operadas pela sua misericórdia, na confiante espera do seu cumprimento definitivo. Ao se reunir em seu nome, para celebrar a memória da obra salvífica do Senhor, com ritmo constante, que segue o curso natural do dia e da noite, a comunidade monástica renova sua disponibilidade interior ao Espírito, que é o primeiro sujeito ativo da celebração, e se disponibiliza a operar em sinergia com ele.
O reconhecimento humilde e confiante da iniciativa de Deus na história da salvação e no próprio caminho espiritual, constitui um eixo fundamental na espiritualidade da RB, contra toda tentação de autojustificação, à qual estão frequentemente expostos os “espirituais” de todo tempo e cunho. Pelo contrario, para “habitar na tenda do Senhor”, isso é, para viver a autêntica relação com ele, os que procuram caminhar “guiados pelo evangelho”, “não se tornam orgulhosos por causa da sua boa observância, mas, julgando que mesmo as coisas boas não podem ser obra sua, mas foram feitas pelo Senhor, glorificam aquele que neles opera” (cf RB, Prol 29- 34).
A existência assim orientada para o Senhor, se torna uma vida oferecida a Deus, culto espiritual próprio dos que “habitam na tenda do Senhor”, como dizia o grande padre da igreja Orígenes:
Também tu, que seguis o Cristo e és seu imitador, se permaneceres na Palavra de Deus, se meditares sua lei dia e noite, se te exercitares nos seus mandamentos, estarás sempre no santuário e não sairás jamais. Pois, deves buscar o santuário não em um lugar, mas nas ações, na vida e nos costumes. Se estes são segundo Deus e correspondem a seus preceitos, mesmo quando estiveres em casa, ou na rua, na cidade, mesmo se te encontrares no teatro, se estiveres servindo ao Verbo de Deus, não tenhas dúvida, tu estás morando no santuário
O Opus Dei, no sentido de serviço cultual, litúrgico, desenvolve uma tarefa fundamental no processo de orientar e unificar o caminho espiritual e a vida da comunidade e de cada monge e monja. É o coração que faz circular o sangue em todo o corpo, até os órgãos mais distantes e as veias mais finas. É evidente que não esgota suas exigências e possibilidades. Todas, porém, as animas.
Trabalhando e Rezando (Ora et labora)
A RB não apresenta uma teologia teoricamente elaborada do Opus Dei/oficio divino, e ainda menos da eucaristia. Esse objetivo não pertence ao gênero literário da RB. Ela visa orientar com sabedoria espiritual a vida cotidiana do monge e da monja no seu conjunto, fazendo dela uma autêntica experiência de Deus, unitária e variegada nas suas expressões. É possível, porém, encontrarmos alguns elementos essenciais, que são como pilares que sustentam a estrutura da comunidade como “tenda do Senhor” (RB, Prólogo), “casa do Senhor” (RB 31,19; 64,5), “templo do Senhor” (RB 53,14; cf 1Pd, 2, 4-9).
Tais elementos se encontram tanto na própria estrutura do dia como em breves sugestões, cheias de experiência e de sabedoria espiritual, presentes às vezes em contextos aparentemente sem conexão direta com a atividade do culto litúrgico. É suficiente lembrar alguns exemplos:
- Vida diária ritmada pelas orações e tarefas cotidianas (RB 8- 18).
- Sacralidade do oratório, que pela sua função exclusiva de lugar de oração e pelo seu simbolismo evocativo, leva o monge e a monja à interioridade (RB 52; cf 44;45;47, etc.).
- Percepção da presença de Deus que, enquanto acompanha a consciência do monge e da monja em cada momento e em todo lugar e atividade (RB 7, 14. 23), na celebração do Opus Dei alcança, todavia, o cume da sua intensidade (19,1). Daí se irradia para a existência inteira e a unifica, num dialogo com o Senhor, secreto e silencioso, sem interrupção (RB 19-20), até fazer do próprio corpo do monge e da monja, reverentemente inclinados, uma expressão sensível da presença divina que os habitam (RB 7,63).
Cai toda separação entre o oratório e a vida cotidiana no seu conjunto, simbolicamente resumida no trabalho, gerando a consciência que todo e qualquer utensílio deve ser tratado com o mesmo carinho e sentido sagrado, com que se tratam os vasos sagrados do altar (RB 31,10). Para o olhar purificado e unificado do monge, não é muito diferente reconhecer com fé e amor Cristo presente no abade, pai do mosteiro em seu nome (RB 2,2; 63, 13), no irmão enfermo (RB 4,16; 36, 1-2), assim como no ultimo dos hóspedes que sobrevém na hora mais imprevisível e inoportuna (RB 53, 1;7;15).
Esta é a harmonia a perseguir e construir entre o sentido interior da fé e do amor, e os gestos do cotidiano que abrangem os espaços e os tempos da vida inteira, construindo um estilo de viver, atuar, celebrar, relacionar-se com as pessoas e com as coisas; na simplicidade, não de modo artificial e formal. Quanto mais autêntica e intensa se tornar esta harmonia da pessoa, menos artificialmente ritualizada se tornará seu estilo de vida. O cuidadoso convite de São Bento para escutar de boa vontade as santas leituras (RB 4,55), e a dedicar-se a elas com zelo, segundo as circunstâncias do dia (cf RB 42 e 48), alimenta aquela elaboração saborosa da palavra do Senhor que os padres do monaquismo antigo chamavam de “ruminatio” (ruminação). Esse processo acompanha silenciosamente o diálogo interior no quarto do coração e unifica o tecido do dia e do tempo. A leitura cotidiana das Escrituras (lectio divina), encontra nesse clima seu respiro e desenvolve sua tarefa de conjunção vital entre os dois eixos do Ora et labora.
A percepção constante e progressiva da presença de Deus
O sentido saboroso da presença amorosa do Senhor permite cantar os salmos de maneira que “a nossa voz concorde com a nossa mente” (RB 19,6-7). Esta atenção desperta a vontade e o gosto de “dar-se frequentemente à oração” (RB 4,63), deixando brotar espontaneamente, pela moção do Espírito, aquela oração irrigada pelas lágrimas, que manifesta e alimenta a purificação do coração com arrependimento e amor (RB 4,57; 20,4).
Há outra oração interior e continua: é o desejo. Ainda que faças qualquer outra coisa, se desejas aquele repouso do sábado eterno, não cessas de orar. Se não queres cessar de orar, não cesse de desejar. Se teu desejo é continuo, a tua voz é continua.
Através deste itinerário interior, sustentado pela estrutura do dia que orienta a Cristo e alimenta o sentido de viver constantemente à presença do Senhor, não com medo, mas na liberdade do amor (cume da vida do monge- cf RB 7, 67 -70), a prescrição “Nada antepor ao Opus Dei” passa do preceito/norma exterior a se cumprir, à expressão da feliz experiência de quem aprendeu a suprema lei do amor, da liberdade e da intimidade com o Senhor.
Esta experiência gera uma nova escala de prioridades e escolhas que passam a modelar a existência do monge e da monja. A esta altura, se desenvolve no coração deles, aquela percepção e visão unitária da vida, permeada pela luz e energia do Espírito, que geram grande liberdade interior, e ao mesmo tempo são capazes de delicada atenção aos pormenores da vida cotidiana e às relações com os irmãos/ãs. Até nos pormenores vive-se com naturalidade a experiência da plenitude e da liberdade. Pequena antecipação do “retorno ao paraíso”, categoria tão querida à tradição monástica para interpretar o sentido e a direção do caminho monástico, à luz da vida espiritual compreendida como inserção e cumprimento da única história da salvação.
Mas nem tudo são flores...
O ritmo cotidiano e contínuo do Opus Dei pode, porém, levar ao risco da rotina vazia de sentido que acompanha de vez em quando a repetição dos gestos humanos, e o do formalismo ritual, até criar a ilusão da autojustificação, produzida pela observância sistemática das leis, ou “observância regular”, como se o fazer modelasse o ser. Este risco pode tocar a vida monástica no seu conjunto, assim como a vida litúrgica. Ritmos cadenciados que nos orientem e sustentem são necessários à vida, mas precisamos também ter atenção, humildade e um pouco de autoironia sobre nós mesmos. São Bento indica o remédio mais eficaz para o formalismo: “Não querer ser tido como santo antes que o seja, mas primeiramente sê-lo, para que como tal o tenham mais com fundamento” (RB 4,62).
Em relação à liturgia, São Bento retoma a clássica afirmação patrística: “A nossa mente concorde com a nossa voz” (RB 19,7). Indicação aparentemente simples, mas que, na sua essencialidade, resume o grande ensinamento bíblico sobre as condições interiores necessárias para prestar a Deus um culto autêntico e a necessidade de assumir com seriedade a estrutura simbólica da pessoa humana e a conseguinte estrutura simbólico-sacramental da liturgia.
A carne é o eixo da salvação
O próprio Jesus retoma o ensino dos profetas sobre o horizonte infinito do culto em espírito e verdade (cf Amos 5,21; Is, 1,1- 20; Oseas 6, 6), cujo fundamento é ele mesmo (Jo 4, 21-24). Paulo convida os batizados, que foram imergidos no mistério pascal de Cristo, a fazer da própria existência, animada pelo Espírito, um culto agradável a Deus (Rm 12, 1-2).
O Concilio Vaticano II fez uma atualização muito significativa desta visão teológica e deste ensino espiritual, fundamentada na Escritura e na tradição patrística, e partindo do grande horizonte da participação ao sacerdócio de Cristo que todos os fiéis são chamados a viver por força do batismo (cf Lumen Gentium n. 10 e 34). Esta perspectiva constitui um grande avanço da eclesiologia do Concílio, pois toca nas raízes da identidade do discípulo de Jesus, molda sua espiritualidade a partir de Cristo orientando assim seu chamado a atuar na sociedade de hoje.
O encontro salvífico com o Senhor se realiza e se manifesta através da linguagem corpórea e simbólica da ação litúrgica. É um encontro que envolve não só a esfera racional, mas também a psíquica e espiritual, por isso envolve a integralidade da pessoa. “Caro salutis est cardo” – “A carne, o corpo, é o eixo da salvação”, afirmava o padre da igreja Tertuliano, ao reivindicar a função fundamental do Verbo Encarnado no processo da salvação cristã e a insubstituível função do batismo e dos sacramentos para a vida cristã. Como dizia Agostinho, se há desejo, há culto e se há culto há salvação.
Segundo a perspectiva cristã, a “carne” constitui um elemento central da experiência litúrgica e da liturgia como expressão da fé e escola de formação espiritual. Hoje em dia se apresentam no grande mercado das “espiritualidades” favorecido pela invasão da mídia, não poucas correntes que pretendem “desencarnar” o caminho espiritual.