Em 2020, o mundo da literatura festeja 100 anos do primeiro romance de Agatha Christie, O Misterioso Caso de Styles. Pouca gente sabia, mas aquela que se tornou a rainha do crime fictício era uma mulher de profunda fé e chegou mesmo a obter do papa Paulo VI a manutenção da Missa Tridentina na Inglaterra
Agatha Christie (1890-1976) parece ser a imperatriz eterna do suspense criminal, mesmo que alguns de seus sucessores secretamente sonhem em destroná-la.
Quando nos recordamos das conexões da criadora de Hércules Poirot com o domínio da fé e da religião, inevitavelmente surge a história conhecida como Indulto Agatha Christie.
A crise litúrgica que afetou a Igreja Católica na década de 1970 não deixou a escritora indiferente.
Preocupada com a anulação do latim e do gregoriano, ela assinou uma petição de intelectuais e artistas, católicos ou não, com o objetivo de obter do papa Paulo VI a manutenção das antigas tradições litúrgicas.
Publicado no jornal Times em 6 de julho de 1971, esse apelo surpreendente foi ouvido por Roma e, em dezembro do mesmo ano, Paulo VI concedeu um indulto mantendo a possibilidade de celebrar a Missa Tridentina na Inglaterra.
Mas por que esse texto oficial adotou popularmente o nome da famosa romancista? Simplesmente porque, lendo a lista de signatários, Paulo VI teria reagido particularmente em nome de Agatha Christie para tomar sua decisão.
Quando Hercule Poirot e Miss Marple testemunham a favor do cristianismo
Para dizer a verdade, seria uma pena reduzir o relacionamento de Agatha Christie com a fé cristã a esse único episódio. Todo o seu trabalho é feito em um mundo mergulhado na ética do cristianismo.
As hipóteses que ela apresenta ao longo de seus romances com o objetivo de descobrir o criminoso seriam impossíveis se não nos referíssemos à visão cristã do bem e do mal ou à fraqueza dos seres, devido à existência do pecado original.
No entanto, a suficiência exibida e reivindicada de seu personagem favorito, o famoso Hercule Poirot, longe da virtude da humildade, muitas vezes sugere o contrário. Uma pista falsa pela qual devemos, acima de tudo, não ser desviados.
É precisamente em nome da moralidade cristã que Poirot enfurece o leitor, apesar de seu gênio detetive. Afinal, ele é “um bom católico”, como confessa em A caixa de chocolates.
No entanto, mais do que o detetive belga, – que sabemos que pertence a uma família numerosa e estudou numa escola de freiras – existe também a encantadora Miss Marple, que testemunha em favor do cristianismo de Christie.
Se o padre Brown, de Chesterton, compreendeu as deturpações do coração humano no fundo do confessionário, Miss Marple, por sua vez, contempla o universo a partir dos conflitos de sua pequena aldeia.
À sua maneira, ela milita pela manutenção da natureza humana. Sua receita é a semelhança observada entre um ato cometido em St. Mary Mead, seu vilarejo, e o crime que ela deve resolver.
Ao seu sobrinho, o escritor Raymond West, que ri gentilmente sobre esse assunto, ela disse: “Bem, meu querido Raymond, a natureza humana é a mesma em todo lugar, mas em uma vila, temos a oportunidade de observá-la mais de perto”.
Essa fé exposta, reivindicada e elevada ao nível de método de investigação não tem nada, em Miss Marple, de contestação do sobrenatural. Pelo contrário! A aldeia de St. Mary Mead lhe interessa porque é lá que ela vive e que se debruça, como em qualquer outro lugar, nos efeitos às vezes devastadores do pecado original. A jovem sabe, no entanto, que a simples observação da realidade pode não ser suficiente.
Eu precisava de fé, da fé verdadeira de São Pedro
Um exemplo? Talvez o mais explícito esteja em Miss Marple no clube de terça-feira, onde a vemos claramente confessando recorrer à oração: “Isso os fará rir, jovens modernos, mas quando estou mergulhada em sérios problemas, eu sempre rezo um pouco – em qualquer lugar, na rua, no mercado – e sempre recebo uma resposta”.
Sua convicção data de sua infância, quando, em seu quarto, se encontrava colado sobre a sua cama um quadro com um conselho de Cristo que muitas vezes perdemos de vista: “Peça e serás atendido”.
Em A Pegada de São Pedro, a imparável e moderna anglicana, quase pronuncia um ato de fé católica ao confessar: “Eu precisava de fé, a verdadeira fé de São Pedro”.
Falando sobre o sucesso do trabalho de sua mãe, a filha de Agatha Christie disse: “Minha mãe era cristã e acreditava na batalha entre o bem e o mal. Ela acreditava que os assassinos deveriam ser presos e punidos e queria mais do que tudo ver os inocentes fora do sofrimento. Ela escrevia histórias com assassinatos, mas não tolerava a violência. E todas as suas histórias transmitem uma mensagem forte de moralidade”.
Mas, como expressa uma das personagens em As obras de Hércules, para ela, suas histórias não se tratavam de um cristianismo barato: “A religião, Monsieur Poirot, pode ser de grande ajuda e grande apoio – mas por religião quero dizer religião verdadeiramente ortodoxa”. Tudo está dito!
Philippe Maxence