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De “Dark” a Hitler: haveria sentido em matar um bebê para “mudar o futuro”?

Adolf Hitler infância
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E. Chitolina - publicado em 17/08/20
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42% dos respondentes à enquete matariam um bebê inocente para punir um adulto criminoso que ele não necessariamente precisaria tornar-seFilmes e séries televisivas sobre viagens no tempo têm feito sucesso há décadas.

No final do século passado, as franquias “De Volta para o Futuro” e “O Exterminador do Futuro” garantiram vaga em muitas listas de clássicos da ficção científica.

A partir de 2005, “Lost” hipnotizou uma legião de espectadores com os entrecruzamentos de diversas espirais de tempo que permitiam que a mesma pessoa se mantivesse no presente da sua própria cronologia de vida e, simultaneamente, no passado de outra linha do tempo paralela, o que, em tese, permitiria que ela interferisse em eventos ocorridos muito tempo antes para tentar impedir as suas consequências.

Pelo menos foi com essa ideia que o protagonista retornou de 2007 a 1977 para tentar explodir a ilha na qual seu avião tinha caído em 2004: se a ilha não existisse mais, avião nenhum poderia cair nela.

Já a série espanhola “O Ministério do Tempo“, que estreou em 2015, propôs a abordagem oposta: os funcionários de um departamento ultrassecreto do governo da Espanha viajariam ao passado para impedir que outros viajantes do tempo alterassem a História tal como a conhecemos.

De 2017 a 2020, foi a vez da alemã “Dark” fazer barulho mundo afora com as suas viagens pelo tempo que se transformaram em sufocantes aprisionamentos em realidades alternativas com estética de pesadelos: assim como em “Lost”, os personagens queriam modificar acontecimentos do passado para tentar apagar as suas derivações futuras, mas, ao intervirem no que já tinha ocorrido e não era mais modificável de fato, acabavam dando início a ramificações cronológicas paralelas, com desdobramentos que apenas colocariam em novos contextos a ocorrência de tragédias iguais ou semelhantes às que tentavam impedir.

A visão de mundo marcadamente schoppenhaueriana-nietzschiana-hermética apresentada pelos roteiristas de “Dark”, aliás, considera impossível fugir do eterno retorno do sofrimento, porque “é assim que o mundo foi criado”. Para essa visão reducionista, a única forma de “resolver” completamente a dimensão dolorosa da própria existência é nem sequer existir. Um pessimismo existencial tão extremo leva diversos personagens a matar ou matar-se como se não houvesse nenhuma alternativa, e se revela, no fim das contas, a verdadeira e obscura essência da série, mais do que as licenças poéticas cientificistas que lhe deram um suposto ar de sofisticação acadêmica.

Não à toa, o título é “Dark” em vez de “Zeit” ou qualquer outro termo genérico ligado ao tempo, seu alegado tema principal. O mundo irreal de “Dark” está preso nos meandros tenebrosos de uma ideia doentia e, felizmente, mentirosa: a de que a vida gira sem sentido em torno ou dentro de uma caverna escura, da qual não existem saídas luminosas.

De “Dark” a Hitler

Continuemos nesse universo fatalista alemão, mas passando de seus filósofos pessimistas e da sua série sombria para um exercício de teoria moral: imagine que, assim como os personagens de “Dark”, você pudesse viajar ao passado e encontrar Adolf Hitler quando ele ainda era bebê.

Você já sabe que, quando crescesse, aquele bebê se tornaria um dos monstros mais insanos e cruéis de todos os tempos, responsável pela tortura e pelo extermínio de milhões de pessoas na pior de todas as guerras já causadas em toda a história da humanidade.

Você teria, diante dos seus olhos e ao alcance das suas mãos, a chance de tentar impedir uma das mais devastadoras ondas de sofrimento e destruição que já varreram a nossa história.

Você mataria aquele bebê?

Adolf Hitler infância

Deutsches Bundesarchiv / Wikimedia Commons (CC)

Esta foi a crua e controversa pergunta colocada pelo New York Times (NYT) aos leitores da sua seção Magazine em outubro de 2015, bem antes das emaranhadas idas e vindas de “Dark”, mas no embalo de um artificial frenesi gerado na época pelo fato de que era justamente aquele o “mês do futuro” para o qual haviam viajado os protagonistas de “De Volta para o Futuro 2“.

Pelo resultado da enquete, veiculado via rede social pela publicação norte-americana, 42% dos leitores responderam que matariam, sim, aquele garotinho. 30% disseram que não o matariam e 28% não souberam dizer o que fariam.

Predestinação versus livre arbítrio

Pesquisas via internet, em geral, têm rigor científico discutível, mas essa enquete dá indício de que bastante gente parece assumir como válida a incidência da “predestinação” nos rumos de uma vida: de acordo com essa perspectiva, o indivíduo estaria “condenado” a se tornar alguém pré-definido irremediavelmente por um roteiro ineludível, como se não tivesse livre arbítrio e como se nada pudesse alterar a sua trajetória – exceto, talvez, a solução radical da sua eliminação da existência.

É uma concepção do ser humano que ignora a sua liberdade de escolhas, e, portanto, a sua capacidade de agir bem ou mal com base nas próprias decisões conscientes e no exercício imputável da própria vontade, e não num cego destino escrito por alguma inteligência etérea e nebulosa, como a que teria traçado as tragédias de Laio, Jocasta e Édipo (ou obrigado o próprio Sófocles a concebê-las e levá-las ao teatro).

A própria pergunta colocada pelo NYT contém em certo grau essa pré-concepção fatalista, e não só esta: contém ainda a pré-concepção de que matar o bebê Hitler extinguiria de antemão não só os atos do Hitler adulto, mas também as suas consequências. Mesmo “Dark” e “Lost” sugerem, porém, que as ramificações derivadas de uma teórica “alteração do passado” podem muito bem não impedir tragédias do presente ou do futuro.

No caso de Hitler, o seu eventual assassinato quando bebê não seria garantia de que a humanidade, por outras vias caprichosas da história, não viesse a provocar em outros contextos e com outros agentes a Segunda Guerra Mundial e todas as aberrações derivadas dela durante e depois. Mudar uma variável pode mudar a conta, mas não necessariamente os seus resultados negativos.

O agir e o ser

Esta reflexão, além do mais, é apenas uma parte do que merece ser discutido a partir da provocação da enquete do NYT: em vez de nos atermos às potenciais alternativas ao “agir” de Hitler, é significativo pensar também nas potenciais alternativas ao “ser” de Hitler.

Acaso ele precisava tornar-se o monstro que veio a ser, ou poderia ter escolhido ser um homem bom e justo? Esta pergunta leva espontaneamente a outra: a única forma de agir na sua infância para impedir que ele se tornasse um monstro precisaria ser o infanticídio?

42% dos respondentes à enquete do NYT matariam um bebê inocente para punir um adulto criminoso que ele não necessariamente precisaria tornar-se. Isto revela uma preocupante e sombria propensão de um número considerável de pessoas a enxergarem “pré-programações” absolutas na índole do ser humano, interpretado neste caso como a versão completa do “lobo do homem” descrito por Thomas Hobbes a partir da expressão dramatúrgica de Plauto.

O ser humano reduzido a um recorte de dados

O cenário se torna ainda mais preocupante quando sabemos que a nossa época nos acostumou a indexar a todos com base em dados indicadores e alegadamente preditivos de virtualmente tudo o que um indivíduo terá, dirá, fará ou será em decorrência de um determinado recorte de dados – ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, influenciados por correntes ideológicas que misturam na mesma salada umas pitadas de mecânica quântica e outras de ética teórica, dizemos crer que tudo é relativo e que nem sequer existe a objetividade, mas somente perspectivas e narrativas.

Só esta contradição, entre as muitas em que transitamos fingindo não notar, já escancara que vivemos de fato em “realidades paralelas”, desdizendo-nos despudoradamente conforme as conveniências momentâneas: por um lado, pontificamos de modo bastante cego as previsões computacionais que avalizamos porque são “fundamentadas em fatos”; ao mesmo tempo, mas num incoerente universo paralelo, negamos a premissa básica da própria previsibilidade, que é o fato de existirem os fatos, já que reiterativamente pregamos a narrativa de que só existem narrativas (ou hermenêuticas, quando queremos ser adicionalmente pedantes).

Milhares de empresas, alheias a esta salada de contradições (e hipocrisias), pagam milhões de dólares por “inteligência” a nosso respeito – e, com base nessa “inteligência”, nos catalogam como “bons” ou “maus” e se arrogam o arbítrio de predestinar-nos conforme parâmetros econômicos, políticos e ideológicos focados em interesses que pouco provavelmente serão os nossos.

Se isto em si mesmo já é grave o suficiente para merecer reflexões (e ações) bastante sérias, é ainda mais grave constatar que, quando os “metadados” indicam que algo ou alguém é ou será “mau” a partir de um ponto de vista relativo, mas absolutizado, uma notável parcela das pessoas aceita essa catalogação com muito pouco senso crítico: 42%, no caso da brincadeira de “eugenia bem intencionada” da New York Times Magazine – uma abjeta contradição, aliás, não apenas em termos.


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