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Uma receita de 2.500 anos para virar um jogo de 7×1 (4ª Parte)

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E. Chitolina - publicado em 29/08/14
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É só o Brasil do futebol que precisa de uma nova estratégia de planejamento, disciplina e continuidade?Esta é a quarta parte da série “Uma receita de 2.500 anos para virar um jogo de 7×1”. Traçando um paralelo entre o nosso país e o fracasso da seleção brasileira na Copa de 2014, a série de artigos propõe 6 pontos a repensarmos como sociedade, em especial ao se aproximar o dia 5 de outubro, data em que convocaremos a seleção que nos representará durante os próximos quatro anos em Brasília e nas capitais estaduais.

5. PLANEJAMENTO, DISCIPLINA E CONTINUIDADE

Em 2004, a seleção de futebol da Alemanha foi eliminada da Eurocopa sem vencer nenhuma partida. Nenhum treinador queria assumir o comando daquela equipe em crise, da qual Jürgen Klinsmann fez um diagnóstico simples e certeiro, registrado pelo jornalista Simon Kuper: “Não temos um atacante matador. Ficamos muito tempo dando passes laterais. Falta velocidade”.

A Alemanha era tricampeã mundial, mas não servia mais como referência para si mesma. Era evidentemente necessário mudar. O próprio Klinsmann acabou assumindo a tarefa, auxiliado pelo assistente Joachim Löw.

Os alemães começaram a estudar a técnica de passes da Holanda e da Espanha, o ritmo de jogo da Premier League inglesa, o recrutamento de base da França e o condicionamento físico dos norte-americanos. Em resumo, as melhores referências que existiam para cada parâmetro a melhorar.

Em 2006, a Alemanha sediou uma bem organizada Copa do Mundo. Venceu todos os jogos da primeira fase, mas precisou dos pênaltis para passar das quartas-de-final contra a Argentina e foi eliminada na semifinal pela Itália, por 2×0.

Em 2008, uma jovem Alemanha conseguiu dar um passo a mais na sua trajetória de progresso e chegou à final da Eurocopa. Mas perdeu de 1×0 para uma Espanha em ascensão.

Em 2010, durante a Copa do Mundo na África do Sul, a Alemanha eliminou mais uma vez a Argentina, desta vez por sonoros 4×0. E, mais uma vez, foi parada na semifinal por uma Espanha que estava em seu auge.

Em 2012, a Alemanha chegou novamente à semifinal da Eurocopa, mas a Itália a derrotou por 2×1. Quatro dos jogadores alemães, no entanto, foram eleitos para a seleção dos melhores do torneio.

Em 2014, uma Alemanha jovial e focada, muito à vontade dentro e fora de campo, determinada e bem treinada, completou a trajetória de reação e renovação que, ao longo de dez anos de trabalho planejado, disciplinado e continuado, a levou da crise à consagração como tetracampeã mundial de futebol. A equipe coesa e sem ídolos messiânicos derrotou no Maracanã a Argentina de Lionel Messi, depois de ter atropelado por arrasadores 7×1 o maior campeão mundial de futebol de todos os tempos em sua própria casa.

Agora técnico da também ascendente seleção dos Estados Unidos, Jürgen Klinsmann tinha feito, poucas semanas antes da Copa, outra declaração registrada pelo jornalista Simon Kuper: “A Alemanha tem hoje alta velocidade e muita técnica. Eles jogam um futebol ofensivo, com mudanças rápidas de posição. Tudo o que nós planejamos em 2004 se tornou realidade”.

Klinsmann tinha passado o bastão como técnico da Alemanha ao seu então assistente Joachim Löw em 2006. Löw deu continuidade ao planejado em 2004: uma estratégia de médio a longo prazo, embasada em diagnósticos pragmáticos e em metas táticas e técnicas concretas e mensuráveis, com balizadores de curto prazo. Foram necessários, naturalmente, ajustes pontuais ao longo dos anos. Mas nunca se renunciou à consciência de que o objetivo era uma excelência estável e duradoura, e não picos instáveis de glória efêmera. Esse objetivo se alicerçou no planejamento detalhado, na disciplina metódica e na continuidade, inspirado sempre pelas melhores referências de sucesso disponíveis no planeta Terra. A Alemanha não cometeu a estupidez de inventar a roda: para recuperar o atraso, ela optou por se equipar com as melhores rodas já inventadas e se manteve atenta para não sair da estrada.

Quando falamos de continuidade, estamos nos referindo ao trabalho constante e coerente voltado a atingir uma meta ambiciosa, mas clara, de longo ou pelo menos médio prazo, combinada com objetivos balizadores de curto prazo que sirvam para indicar se estamos mesmo avançando pela estrada certa.

A continuidade, assim entendida, supera a miopia imediatista, do tipo que teria achado, em 2008 ou 2010, que “a Alemanha progrediu em cada campeonato, mas ainda não ganhou nenhum título”. Uma visão mais ampla enxergaria que “a Alemanha ainda não ganhou nenhum título, mas vem progredindo em cada campeonato”.

Essa continuidade implica, portanto, um progresso crescente, mensurável e sustentável, que é diferente não apenas dos picos oscilantes de euforia imediatista, mas também do otimismo abstrato que fica esperando indefinidamente uma glória futura baseada em mera torcida. Os balizadores de curto prazo garantem, ainda, que a continuidade não se confunda com pura teimosia: teimosia é insistir no ineficaz ou, pior ainda, no contraproducente.

O Brasil do futebol teve uma prova clamorosa de que precisa fazer em 2014 o que a Alemanha começou a fazer em 2004: diagnosticar-se com objetividade e humildade; identificar claramente os seus pontos fracos; estabelecer uma estratégia de longo prazo que não aceite nada menos que a excelência duradoura e definir balizadores de curto prazo que indiquem se o trabalho está mesmo dando resultados concretos, mensuráveis e progressivos.

Acontece que o Brasil do futebol, neste ano mais do que nunca, se revelou como imagem e semelhança do Brasil-sociedade, conforme demonstrado por vários outros “7×1” que nos humilham em diversos rankings bastante mais relevantes que o da Fifa: da educação à saúde, da segurança pública ao Índice de Desenvolvimento Humano, da inflação ao crescimento do PIB, da infraestrutura de transportes ao saneamento básico, do desperdício de água tratada ao excesso de burocracia, da selva de regras fiscais ao baixo retorno dos tributos cobrados, da corrupção política aos níveis de engarrafamento, das carências em telecomunicações aos baixos números em turismo estrangeiro, da baixa produção científica aos conchavos politiqueiros, dos moradores de rua aos dependentes de crack. O Brasil-sociedade apanha tanto quanto o Brasil do futebol, mas em partidas muito mais sérias e decisivas.

Não fazia sentido, em 2004, a Alemanha olhar para trás e se gabar de ser tricampeã mundial. Não faz sentido, em 2014, o Brasil do futebol olhar para trás e se gabar de ter cinco títulos mundiais. Da mesma forma, não faz sentido o Brasil-sociedade olhar para trás e se contentar com as conquistas que obteve em determinados períodos e em determinados aspectos. O que faz sentido, em 2014, é encararmos o agora e o daqui para frente: estamos mais uma vez estancados. Estamos apanhando de muitos países em partidas cruciais. Não temos ataque. Perdemos muito tempo dando passes laterais. Falta velocidade. Precisamos de muito mais técnica. Precisamos nos inspirar nas melhores referências de sucesso efetivo. Temos que adotar uma estratégia de planejamento, disciplina e continuidade que, validada constantemente por balizadores de curto prazo, nos leve a nada menos que a excelência duradoura, e não a novos e efêmeros picos de euforia imediatista.

Será que algum dos candidatos a técnico do Brasil-sociedade tem uma estratégia clara de planejamento, disciplina e continuidade que nos torne finalmente um time vitorioso como nação?

Leia aqui as partes anteriores desta série de artigos. Para ler a próxima e última parte, acesse aqui