Uma fotografia autêntica é luz que transfigura a palavra – mesmo quando a imagem nos revela as trevas mais devastadorasA fotografia parece ter-se tornado uma arte banal em nossos tempos ávidos por derramar e consumir imagens, as mais fugazes e fúteis, as mais invasivas e degradantes: praticamente todos, desde que não façam parte do inframundo da miséria, tiram fotos e as divulgam torrencialmente em tempo real, sem qualquer senso de filtro – e não estamos falando, apenas, de efeitos visuais. Nas chamadas sociedades conectadas, de acordo com os entendidos do marketing digital, a maior parte das (cada vez mais longas) horas de redes sociais são devotadas a consumir as fotos dos outros.
Entretanto, tirar fotos a esmo e postá-las num fluxo informe está a uma distância imensa de ser de fato fotógrafo – assim como entre a torrente de imagens vazias que encharca o cotidiano e a verdadeira fotografia existe uma diferença determinante: embora sejam tecnicamente produzidas por ferramentas fotográficas, a grande maioria das imagens que se disparam hoje não são, no sentido etimológico do termo, verdadeiras fotografias.
A origem grega do termo “fotografia” captura, ela própria, um instante de poesia: “fotografia” quer dizer “escrita de luz“.
Uma fotografia autêntica é luz que transfigura a palavra.
E a luz lançada por uma fotografia fiel à própria essência pode vir – e costuma vir com dolorosa frequência – de cenas em que, se há algo que ofusca os olhos, é o oposto da luz: são as trevas; um breu pesado e indistinguível.
Há grandes fotografias que refletem a vida e a sua força radiante, a inventividade do espírito, a colossalidade da natureza, a surpreendente singeleza do extraordinário. Sim, há grandes fotografias da luz que entusiasma.
É transtornante, porém, a quantidade, entre as grandes fotografias que conquistaram lugar cativo na memória coletiva, de imagens que captam e transmitem a inexistência daquela distância que, na tese, separa com nitidez a fragilidade extrema e a covardia suprema; de imagens que plastificam de modo humilhante a enormidade da pequenez humana; de imagens que eternizam triunfos épicos da boçalidade, da estupidez, do absurdo, do horror.
Do mal.
Mesmo essas fotos, no entanto, são “escrita de luz” – porque, no espesso da noite que nos envolve, elas avivam fagulhas quase apagadas da nossa humanidade.
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1945
Foto de Joe O’Donnell. Nagasaki, Japão. O rosto sereno do menininho menor parece transmitir um quê de ternura, de serenidade… como um bebê, frágil, que dorme em paz. Mas esta é, na verdade, a lancinantemente dolorosa imagem de um pequeno inocente morto, assassinado, carregado nas costas pelo irmãozinho, de míseros 10 anos de idade, rumo à pira da cremação. Esta foto mudou para sempre a vida de um fotógrafo militar, que conta a história desta cena e do seu significado indescritível neste artigo: veja AQUI.
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1972
Esta foto de Nick Ut (Associated Press) levou o Prêmio Pulitzer, equivalente ao “Oscar” da fotografia, foi eleita a Imagem do Ano de 1972 e se eternizou como símbolo não apenas dos horrores da Guerra do Vietnã, mas da crueldade de todas as guerras, em especial para com as crianças e vítimas civis. A “Menina da Bomba de Napalm” é a protagonista absoluta da foto – e também da própria história, de superação inacreditável. Ela se converteu ao cristianismo e… bom, saiba o resto clicando AQUI.
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1993
Foto de Kevin Carter. Na região sul do então Sudão unificado, um abutre aguarda, sombrio, para saciar a fome às custas da fome da menina, raquítica, esquálida, entregue ao desespero da morte na absoluta miséria. A imagem, estarrecedora, rendeu ao fotógrafo o Prêmio Pulitzer, mas o abalou de tal maneira que ele se suicidou três meses após a premiação.
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2015
Foto da jornalista turca Nilüfer Demir. A imagem inerte do pequeno Alan Kurdi, com sua blusa vermelha, sua bermuda azul, seus três aninhos de idade e seu corpo de bruços na praia de Bodrum, chocou o mundo em 3 de setembro de 2015, durante o auge da crise humanitária mundial dos refugiados. O choque durou alguns dias, rendeu uma enxurrada de matérias na mídia e, como de costume, passou: morreu e foi enterrado, junto com o próprio Alan. O corpo do menino repousa em sua Síria natal, ao lado do túmulo em que estão enterrados Galib, seu irmãozinho de 5 anos, e Rihan, a mãe. No naufrágio do bote que levava a sua família refugiada da Turquia para a Grécia, em 2 de setembro, o pai, Abdullah, também naufragou. Ele também saiu morto – mas não enterrado. Sobreviveu em corpo, para uma vida em que a imagem impressa pela morte nunca mais será apagada de sua alma nesta terra. Ele compartilha a sua tragédia nesta matéria AQUI.
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2016
Uma das mais recentes cenas que sacudiram durante átimos fugazes a consciência dura da humanidade nos mostra o pequeno Omran Daqneesh, um menino de cinco anos de idade que nunca soube o que é viver num mundo sem guerra. Ele já nasceu numa Síria dilacerada e, nesta imagem, divulgada pelo grupo Aleppo Media Center, opositor ao governo de Damasco, recebe atendimento médico em uma ambulância da cidade de Alepo, após sobreviver a mais um bombardeio – pelo menos por enquanto. Quantas perguntas estão explícitas no silêncio do seu olhar perdido? Quanta espera se esconde na quietude impossível das suas mãozinhas? Esta foto é constantemente tachada de ser falsa e de ter sido montada para atacar o governo sírio, mas essa polêmica, ainda aberta, não apaga o fato de que imagens semelhantes a ela foram testemunhadas ao vivo centenas ou até milhares de vezes naquele país martirizado pela brutalidade estúpida e covarde da guerra.
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Assim como essas imagens, em silêncio, oremos.
Assim como essas imagens, incapazes de calar o que nos resta de humano, choremos.
Mas de quantas outras imagens assim precisaremos para reagir?