O consumo da carne de um roedor na Mongólia seria a causa de duas suspeitas de contaminação recém-identificadas naquele paísA pavorosa peste negra do século XIV se tornou quase mítica ao longo dos séculos por ter sido uma das mais devastadoras epidemias já registradas pela História em todos os tempos: o surto de peste bubônica matou, segundo estimativas, um mínimo de 75 milhões e um máximo de 200 milhões de pessoas na Europa, Ásia e norte da África, atingindo o pico no continente europeu entre os anos de 1346 e 1353. A peste negra dizimou de 30% a 60% dos europeus, fazendo com que o continente demorasse em torno de 200 anos para recuperar o nível populacional anterior à epidemia. Embora o seu pior surto tenha sido o do século XIV, a mesma peste retornou várias vezes em surtos menores até o início do século XX.
Características e disseminação histórica
A peste bubônica provoca hemorragia em diversos órgãos, além de bulbos e manchas negras na pele. No grande surto do século XIV, a enfermidade matava a maioria dos infectados em poucos dias, disseminando o pânico por todas as regiões em que surgiu.
A doença não é causada por um vírus, como a covid-19, mas sim pela bactéria Yersinia pestis, que pode ser transmitida pela mordida ou pelo consumo da carne de roedores infectados, como ratos, esquilos, marmotas, coelhos e cães-da-pradaria.
A origem da peste negra foi, possivelmente, a Ásia Oriental ou Central. Ao longo da Rota da Seda, chegou por volta de 1343 à Crimeia (região anexada pela Rússia em 2014 e até então pertencente ao território da atual Ucrânia). Daquela península no Mar Negro, a doença teria sido transportada até a bacia do Mar Mediterrâneo nas pulgas de ratos que viajavam em navios mercantes genoveses. A partir da península italiana, continuou avançando Europa adentro até contaminar a maior parte do continente. Esta é, pelo menos, a teoria predominante entre os pesquisadores.
No tocante ao extraordinário alcance daquela epidemia, porém, estudos e simulações recentes com modelos matemáticos realizados por pesquisadores das universidades de Oslo (Noruega) e Ferrara (Itália) apontaram que a rápida disseminação da doença entre a população europeia se deveu a pulgas e piolhos presentes nos próprios humanos. Embora não seja possível a comprovação real dessa teoria, os cientistas a consideram a explicação mais plausível para a proliferação continental da epidemia, porque, segundo eles, tamanha disseminação teria sido pouco provável se dependesse apenas das pulgas de ratos.
Como quer que seja, é fato que a peste negra só pôde transformar-se num desastre gigantesco por causa dos baixíssimos padrões de higiene tanto das pessoas quanto das casas e ruas. A importância das políticas de higiene pública só foi reconhecida com maior amplitude pelos governos a partir do século XIX, e bastante gradualmente: até então, mesmo na Europa, as ruas no geral eram imundas, com circulação habitual de animais vivos de todo tipo e, consequentemente, abundância de parasitas que facilitavam a transmissão de doenças mortíferas. A peste foi apenas mais uma delas. O cenário, possivelmente, não era muito diverso do que se vê em alguns mercados de animais vivos da China atual, onde tiveram origem várias das recentes epidemias de coronavírus, inclusive a presente pandemia de covid-19. Medidas fundamentais de higiene eram, são e serão essenciais para conter esse tipo de praga evitável.
Tornou-se emblemática da peste negra a figura do assim chamado “médico da peste“: por desconhecimento científico, achava-se que a transmissão acontecia mediante contato com os miasmas, ou seja, exalações pútridas e fétidas provocadas pela doença. A fim de dificultar que os médicos entrassem em contato com esses supostos meios de transmissão da peste, foi desenvolvida na França uma longa vestimenta fechada dos pés à cabeça e que incluía uma sinistra máscara em formato de bico de pássaro, dentro da qual colocavam-se misturas de ervas que supostamente neutralizariam a inalação dos miasmas. Esse aparato era ineficaz: o que veio a combater a doença com efetividade foram os antibióticos, já no século XX. A associação da perturbadora “máscara de pássaro” com a Idade Média também é errônea, pois o aparato surgiu na Idade Moderna, durante surtos bastante posteriores à grande epidemia do século XIV.
O retorno da Peste Negra: casos na Mongólia e na China
Em pleno 2020, e no meio da monumental pandemia de covid-19 que já infectou mais de 10 milhões de pessoas, matou mais de 500.000 e obrigou ao confinamento de mais de um bilhão de pessoas em dezenas de países desde a explosão do surto na China em dezembro de 2019, eis que o fantasma da peste negra assustou o mundo neste fim de semana com a notícia de que dois casos suspeitos de peste bubônica foram identificados na província de Khovd, na Mongólia.
Segundo a imprensa local, os doentes são dois irmãos, de 27 e 17 anos. Eles teriam consumido carne de marmota, um grande roedor com aparência semelhante à dos esquilos, mas de tamanho notavelmente maior, que vive em regiões montanhosas do hemisfério norte.
Os dois irmãos infectados estão sendo tratados em hospitais diferentes. O Centro Nacional de Doenças Zoonóticas da Mongólia identificou 146 pessoas que tiveram contato direto com eles, além de outras 504 que tiveram contato secundário. Amostras dessas pessoas foram coletadas para análise. As autoridades isolaram a região, próxima da fronteira com a China e com a Rússia. A circulação de veículos foi suspensa e a de pessoas drasticamente reduzida.
Autoridades chinesas também aumentaram as medidas de segurança após a confirmação de um caso neste mesmo fim de semana. O paciente é um camponês da cidade de Bayannur, situada na Mongólia Interior (apesar do nome, que se deve a razões territoriais históricas, trata-se de uma região autônoma pertencente hoje à própria China e não à vizinha Mongólia). O enfermo chinês foi colocado em quarentena e apresenta condições estáveis. O governo local decretou alerta de nível 3: ficam proibidos a caça e o consumo de animais que poderiam estar infectados e as pessoas devem reportar qualquer caso suspeito às autoridades sanitárias.
Em 2019, a Mongólia já tinha confirmado casos de peste bubônica: em novembro, um homem de 55 anos contraiu a doença depois de comer carne de coelho; antes, em maio, um casal havia morrido após comer carne de marmota. A Associação Internacional de Assistência Médica para Viajantes informa que o risco de peste está presente em todo o país e que a transmissão pode acontecer em qualquer época do ano.
É motivo para preocupação?
É motivo para as autoridades das regiões afetadas ficarem atentas e tomarem precauções, mas não para alarmismos e muito menos para pânico. Atualmente, a peste bubônica é tratável com antibióticos, que são bastante eficientes. É improvável que a peste bubônica gere uma nova epidemia nos dias de hoje.
Casos pontuais são identificados de tempos em tempos, atingindo grupos relativamente pequenos de pessoas, como nos casos da Mongólia e da China. O surto de maior abrangência registrado em anos recentes ocorreu em 2017 na ilha de Madagascar, com cerca de 300 casos. A medicina atual, muito diferente do que acontecia no século XIV, tem uma compreensão bastante sólida de como essa doença é transmitida e de como os pacientes infectados devem ser tratados.
De todos os modos, a peste bubônica é, certamente, uma doença grave com a qual não se pode brincar. O mais eficaz é prevenir. Para isto são fundamentais as medidas de boa higiene, em particular no controle de infestações de ratos e pulgas, bem como os hábitos saudáveis de alimentação, dado que a bactéria dessa doença é transmitida em muitos casos pela carne de roedores que ainda são consumidos com relativa normalidade em algumas áreas do mundo. Esses hábitos têm caráter cultural até certo ponto, mas decorrem principalmente da pobreza. Logo, são passíveis de mudança com políticas de governo e iniciativas educacionais que promovam a conscientização e, é claro, proporcionem os meios necessários para que a população não precise recorrer a fontes de alimentação com tamanho grau de risco para a saúde.
A peste negra e a Ave-Maria
Atribui-se ao contexto histórico da peste negra do século XIV a composição e popularização da segunda parte da Ave-Maria. Confira a respeito no artigo seguinte:
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