Está havendo, isso sim, um crescimento da violência por parte de grupos pequenos e um clima de raiva cada vez mais difusoO Chile vive, já há algum tempo, um contexto de grande agitação social. É uma situação paradoxal. O país apresente um dos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) mais altos da América Latina, sugerindo que o povo vive relativamente bem, ao menos em comparação com seus irmãos latino-americanos. Contudo, é também um país altamente desigual.
Há décadas, vem passando por um processo de desenvolvimento econômico focado na eficiência econômica e nos mercados, onde o Estado abdicou de parte de suas funções de proteção social (exatamente o problema do paradigma neoliberal criticado por Francisco na Fratelli tutti, FT 163-169). Nenhum outro governo sul-americano avançou tanto numa perspectiva neoliberal quanto o chileno. O resultado dessa priorização do econômico não foi tanto o aumento da qualidade de vida e o bem comum, mas uma situação de piora da vida das pessoas e um clima de revolta com a dignidade humana ultrajada pelas dificuldades materiais crescentes.
A população, relativamente politizada, realizou – em 2019 – os maiores e mais violentos protestos sociais após a redemocratização do país (1988). Duas lições restaram desses protestos. A primeira é que o Estado, nas democracias ocidentais, não pode deixar de cumprir suas funções de proteção social, particularmente quando ainda existem bolsões de pobreza e desigualdades gritantes – sob o risco de arrastar toda a nação para o caos social. A segunda é que os protestos, por si, não conseguem conduzir o país para um futuro melhor. É necessário um clima de entendimento nacional e diretrizes claras de como mudar a situação, quais os sacrifícios pedidos à população na atualidade, quais ganhos devem ser alcançados e quando serão atingidos. Sem isso, a desordem gera apenas caos, sem levar à transformação. Além disso, a raiva e a frustração aumentam o ressentimento e estimulam os grupos violentos – que sempre são minoritários, mas se expressam com maior ou menor vigor dependendo da situação como um todo.
A estratégia da violência
Desde os anos ’80, espalhou-se pelo mundo uma tática que consiste na presença, em meio a protestos de massas, de grupos organizados e violentos, que realizam atos de vandalismo contra estruturas que consideram “símbolos do sistema opressor” – bancos, lojas, prédios governamentais, estações de metrô e até… igrejas. Os militantes desses grupos, os chamados black bloc (grupo de preto, em alusão às roupas escuras e máscaras que costumam usar), são geralmente jovens que misturam um posicionamento ideológico anárquico com um profundo ressentimento e raiva das instituições sociais.
É nesse quadro que se deram os incêndios das igrejas de Assunção e São Francisco Borja, em Santiago, no domingo, 18 de outubro. Seguindo o roteiro de outros atentados feitos com essa mesma estratégia, o número de envolvidos é muito pequeno em relação ao conjunto de manifestantes: uns poucos militantes numa manifestação com milhares de pessoas. Não se pode extrapolar a mentalidade dos perpetradores desses atos para toda a multidão presente nas praças. Essas igrejas não foram queimadas porque está havendo uma onda ideológica cristofóbica no Chile. Porém, está havendo, isso sim, um crescimento da violência por parte de grupos pequenos e um clima de raiva cada vez mais difuso, que favorece e acoberta essas ações.
Contudo, uma outra questão deveria nos incomodar. As ideologias não conseguem se sobrepor aos fatos. Uma concepção ideológica (uma “falsa consciência”) penetra na mentalidade de uma pessoa porque aconteceram fatos que, de um modo ou de outro, fizeram com que essas ideias parecessem críveis. Se alguns jovens queimaram uma igreja, se quem estava em volta deixou isso ocorrer, é porque, na história de algumas pessoas, o cristianismo não foi apresentado como sinal do amor de Deus no mundo, que confirma e valoriza a dignidade de cada ser humano.
Não se trata aqui de defender os violentos e culpar os violentados. A imensa maioria dos católicos é vítima dessas atrocidades, que os comovem e ferem sua dignidade. Porém, se queremos evitar que essas coisas se repitam e se espalhem, temos que entender como chegam a acontecer.
O testemunho que nossos jovens precisam
No caso do Chile, a porcentagem de católicos na população caiu drasticamente após escândalos de pedofilia: três em cada 10 católicos deixaram de declarar-se como tal entre 2005 e 2014. Assim como no caso dos jovens que atearam fogo às igrejas, delitos praticados por poucos afeta a muitas. Por outro lado, os testemunhos positivos sempre chegam com muito mais dificuldade aos jovens.
Não adianta culparmos a imprensa. Os jornalistas são pessoas como todas as outras, noticiam aquilo que os impacta, são vulneráveis às ideologias quando não encontram os fatos que as desmentem. Jornalistas, professores, militantes políticos e jovens são formados tanto pelas ideias quanto pelos testemunhos que encontram. Quanto mais débeis forem os testemunhos, mas indefesos estarão tanto eles quanto os demais diante das ideologias.
Mas qual é o testemunho que vence as ideologias? Pensamos muitas vezes que é o testemunho da nossa coerência, da nossa adesão voluntarista aos princípios da fé e da moral. Pobres de nós! Somos todos pecadores e, portanto, falíveis. A inteligência da ideologia está em explorar justamente as falhas que acontecem com todos. O testemunho que não desilude é aquele do amor e da misericórdia recebidos e compartilhados. Aquele que encontrou um testemunho de amor sincero, gratuito e verdadeiro, nunca o esquece. Poderá, nos momentos da juventude, condená-lo por causa da falibilidade humana, mas – com o passar dos anos – irá compreendê-lo e admirá-lo cada vez mais. O testemunho da coerência vai se enfraquecendo com o tempo, o testemunho do amor vai se fortalecendo.
O fascínio despertado pelo Papa Francisco, como vimos em outro artigo, nasce justamente de sua capacidade de testemunhar o amor. É uma lição preciosa para todos nós cristãos de nosso tempo. Se queremos que nossos jovens não sigam ideologias que proclamam a violência e que se voltam contra a Igreja, temos que ser testemunhas vivas do amor de Cristo, que nos atinge e que, por nosso intermédio, pode atingir a todo o mundo.
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