Decidir pela vida de um inocente vai além da questão privada e tem uma gigantesca dimensão socialQuem afirma que o aborto é apenas um assunto de consciência, habitualmente é favorável à sua legalização. Até pode aceitar serenamente que o aborto seja algo a evitar, mas pensa que nem sempre será obrigatório posicionar-se contra esse acto. Haverá excepções que caberá à mulher grávida, e só a ela, identificar.
Essas mulheres que, em determinadas situações, decidem abortar – dizem – fazem-no “em consciência”. Não o fazem de ânimo leve, mas ponderam todos os factores e julgam que o mais correcto, ou o menos mau, é realizar o aborto. A sua consciência aprovaria essa atitude. Ninguém mais tem nada a dizer sobre a sua bondade ou maldade. O Estado, ou quem quer que seja, não deve ter o direito de intromissão na consciência da mulher, contrariando uma íntima decisão Não seria, pois, legítima uma intervenção pública proibitiva.
Que objecções se podem levantar a este modo de focar o problema?
Posso concordar em que, como qualquer problema de índole moral, o aborto é, à partida, uma questão de consciência. Também o são o cumprimento das leis de circulação rodoviária, a tributação fiscal, a pirataria de software, a violência doméstica, o suicídio, a adição a drogas, etc. A prova disso, é que nestas, como em muitas outras questões, a par de medidas de coacção, expõem-se motivos e fazem-se campanhas para que as pessoas adiram livremente ao que se estima correcto e vantajoso para os cidadãos e a sociedade.
Assim sendo, parece legítimo sugerir duas perguntas:
1) que critérios se devem seguir para enquadrar um acto, que tem um claro significado ético, dentro dos que não devem ser tutelados ou julgados por “terceiros” (chamemos-lhes “actos de mera consciência” ou de “moral privada”)?
2) No caso dos critérios de enquadramento serem difusos ou pouco claros, quem decide sobre esse eventual enquadramento de um acto na moral privada (ou na moral pública)?
Certamente, os actos que tenham particular relevo social, que envolvam direitos de terceiros ou transtornem a vida social devem ser regulados socialmente. Isto é, a Sociedade (o Estado) deve intervir para evitar abusos sobre pessoas em peculiar situação de vulnerabilidade, que são os mais necessitados da tutela jurídica. Assim, o Estado deve actuar nos casos de grave violência doméstica, ou de excessos de velocidade nas estradas, em caso de incitações ao racismo e à xenofobia ou em despedimentos sem justa causa. Quando o Estado intervém não significa que o infractor não invoque a sua consciência, por exemplo, para assegurar que, no seu caso e de acordo com ela, circular a 180 km/h não constituía perigo nem para o próprio nem para outros. E até é provável que a coima (ou multa, no Brasil) não mude a consciência do condutor temerário. Continuará a pensar que foi injustamente punido. Deveria o Estado retroceder na coima em nome do juízo de consciência do infractor? Ou deverá até retirar a lei, confiando no prudente juízo de cada automobilista? E, no caso de optar pela supressão da lei, quando houvesse um acidente por excesso de velocidade, com a morte de inocentes, a quem se exigiria a reparação do dano causado: ao automobilista falecido? Ao fabricante de carros? Ao construtor da estrada? A ninguém, em memória da consciência do infractor?
Por que razão há leis frequentemente violadas que não são suprimidas? O Estado tem-se mostrado até cada vez mais interventivo em matérias como a fuga ao fisco ou os excessos na condução. Por que razão, em matérias, como o aborto ou o consumo de drogas, se pretende seguir o processo inverso? Quem decide que uns actos não devem ter fiscalização social e outros sim? Com que fundamento toma essa decisão?
No caso do aborto, ao admitir a consciência como único juiz do acto, poder-se-iam adivinhar um rol de consequências de transcendência social:
1) morre um inocente, que não é quem emite o juízo de consciência;
2) actua sob cobertura legal alguém que mata inocentes;
3) no caso de se querer opor ao aborto, a mulher fica sem protecção legal que contrabalance as pressões familiares e sociais;
4) a mulher que venha a sofrer o trauma pos-aborto encontrar-se-á numa situação em que alguém a terá de tratar: a equipa que procedeu ao aborto, ocupar-se-á da situação?;
5) em caso de legalização, o Estado recrutará pessoas (pagas pelos contribuintes) para realizar o aborto a pedido;
6) corre-se o risco de haver profissionais da saúde e estudantes de medicina impelidos a cooperar, mais ou menos “diplomaticamente”, com actos que violam as suas consciências;
7) mais difícil de demonstrar em poucas linhas, é a diminuição da sensibilidade perante a vida humana. Refiramos apenas um exemplo. Em Portugal, está legalizado o aborto eugenésico em determinadas condições. Quando o Estado permite matar embriões pelo facto de terem uma deficiência, como olhará a sociedade para as pessoas com algum “handicap”? Em rigor, uma sociedade humanista desdobrar-se-ia em medidas que visassem proteger aqueles que são portadores de alguma dificuldade adicional. Quando se permite a sua morte intra-útero o Estado dá um sinal de que esses cidadãos interessam menos do que os outros. Não é, pois, estranho que várias associações que protegem as pessoas com deficiências protestem pela crescente falta de sensibilidade para com eles. Perante estas e outras questões, por que razão há-de ser o aborto uma questão de “mera consciência” da mulher?
Uma questão adicional. A sociedade tem vindo a aumentar a sensibilidade para intervenções legais que, noutros tempos, eram consideradas alheias ao seu âmbito de actuação. Por exemplo, a nível social, é cada vez mais unânime que a ingerência humanitária nalguns Estados é legítima e até moralmente obrigatória sob determinadas condições. A soberania de um Estado – a sua consciência colectiva – não é necessariamente um valor intocável.
Também a nível familiar também é cada vez mais perceptível que há casos de violência doméstica, que ocorrem entre quatro paredes, onde a lei deve intervir. O âmbito familiar não é absolutamente inviolável.
A sociedade tem, pois, tomado consciência de que, perante determinados males, é preciso intervir legalmente para salvaguardar direitos humanos elementares. Se este caminho da justiça é considerado um avanço na vida dos povos, pois visa proteger seres indefesos, por que razão no caso do aborto se pretende que a lei abandone um âmbito onde o desfecho termina com a morte de um inocente e uma menor sensibilidade perante o carácter único da vida humana? Não seria o momento de pensar seriamente no estatuto jurídico do embrião?
Apenas um factor de “curiosidade”: na Encíclica sobre o Evangelho da vida, João Paulo II chamava a atenção para o facto de que, com este argumento, se pretende uma autonomia total da consciência para abortar, ao mesmo tempo que se exige aos legisladores e políticos a abdicação da sua consciência que deve submeter-se sem reservas ao que a maioria aprove. Contradições à volta da consciência…
Em resumo, pretender que o aborto deva ficar reduzido a uma questão de moral privada não corresponde ao modo como se lida com assuntos até de menor alcance social. A expressão soa bem aos ouvidos, porque sem dúvida apela à responsabilidade, mas é incompleta: o aborto é uma questão de consciência pessoal, mas tem uma gigantesca dimensão social. Há muita gente que, sensatamente, prefere viver numa sociedade em que se protegem os mais fracos.
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VEJA TODOS OS 4 ARTIGOS DESTA SÉRIE:
Parte 1: “Problema de consciência”?
Parte 2: “Crianças não queridas”?
Parte 3: É válido dizer “Ninguém aborta por gosto”?
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SOBRE O AUTOR:
O Pe. João Paulo Pimentel é um sacerdote português a quem Aleteia agradece muito pela generosidade em contribuir para o site. Nesta série de 4 artigos, ele nos propõe reflexões de fundamental importância para a devida discussão sobre o aborto, refutando sofismas e argumentações inconsistentes dos defensores dessa prática infanticida.