Aleteia logoAleteia logoAleteia
Sexta-feira 26 Abril |
Aleteia logo
Atualidade
separateurCreated with Sketch.

Agonia silenciosa da República Centro-africana

Manifestacion RCA – pt

AFP PHOTO/ SIA KAMBOU

Manifestación por la paz en las calles de Bangui (RCA)

Aleteia Vaticano - publicado em 27/11/13

Deslocados internos: 230 mil; refugiados: 70 mil... Após o golpe de Estado, a República Centro-Africana submerge no caos

Por Vincent Munié

Meados de setembro de 2013, os partidários do presidente François Bozizé, deposto por um golpe de Estado em 24 de março, lançam uma ofensiva militar em Bossangoa, no noroeste da República Centro-Africana (RCA). Eles afirmam querer recuperar o controle do país, que caiu nas mãos da Seleka, uma coalizão de movimentos rebeldes vindos do norte.1 Sessenta pessoas teriam morrido no ataque. Desde março, os combates fizeram centenas de vítimas e provocaram uma vasta crise humanitária que afeta mais de 1 milhão de habitantes, que foram obrigados a fugir da violência. Tudo isso diante da quase indiferença da “comunidade internacional”. País pobre – 180o em 2013 na classificação do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) –, a RCA não dispõe de recursos estratégicos. Mas, agora, é o desmoronamento do Estado inteiro que se desenha, tendo por chave a aparição de um vasto território de instabilidade e de não direito no centro do continente, às fronteiras com grandes vizinhos explosivos, a República Democrática do Congo (RDC), o Chade, a Uganda e o Sudão, um novo cruzamento entre o islã e os cristãos.

Silêncio total. Em março, os pedidos de ajuda desesperados de Bozizé pela primeira vez não receberam nenhuma resposta. A Seleka, mantida às portas de Bangui desde novembro de 2011, acabava de tomar a capital. Mais bem equipada, mais organizada, com cerca de 4 mil combatentes, seu poderio militar era superior ao das Forças Armadas Centro-Africanas (Faca), sem formação, sem meios logísticos e até mesmo sem armas. Dos 5 mil soldados regulares, apenas 3 mil dispunham de um fuzil; os outros se viam confinados ao papel de bombeiros. Apenas os oitocentos homens da guarda presidencial pareciam estar em condições de se opor ao ataque rebelde. Mas esses soldados, temidos por terem derrubado o presidente Ange-Félix Patassé em benefício de Bozizé em 2003, foram rapidamente vencidos, depois de um curto combate no norte da capital.

O chefe de Estado mal teve tempo para fugir: atravessou o Rio Ubangui para se refugiar no RDC. Do seu lado, os soldados africanos da Força Multinacional da África Central (Fomac), enviada em interposição pela Comunidade Econômica dos Estados da África Central (Ceeac) em 2008, e os seiscentos franceses do destacamento “Boali” empregado para proteger os cidadãos do país quando do golpe de Estado de 2003 não manifestaram reação. Enquanto em março de 2007 uma operação de paraquedistas franceses, apoiada por elementos do Chade, tinha expulsado os rebeldes de Birao perto da fronteira com o Sudão,2 desta vez Paris e N’Djamena pareciam ter abandonado seu aliado.

Uma colcha de retalhos

Nas mãos da Seleka, Bangui tornou-se logo palco de pilhagens e de abusos frequentemente dirigidos contra qualquer indivíduo suspeito de ter apoiado o presidente deposto. Os postos da ONU, em especial o Escritório de Coordenação dos Casos Humanitários (Ocha), foram roubados; os bairros tradicionalmente ligados ao poder precedente foram submetidos a violentas represálias. De modo inexplicável, a embaixada da França contentou-se com medidas mínimas para proteger os 1,2 mil expatriados, enquanto estes foram diretamente ameaçados e, em alguns casos, vítimas de assaltos.

Presentes desde a independência em virtude de um acordo de defesa, os paraquedistas e os marinheiros franceses, para os quais uma das missões era a proteção dos cidadãos, continuam confinados no acampamento de Mpoko. É verdade que os riscos de uma intervenção são muitos: a Seleka revelou-se uma colcha de retalhos complexa de facções políticas de todas as origens. Assim, encontramos nela rebeldes chadianos do coronel Aboud Moussa Mackaye, jenjawids sudaneses fugidos do conflito de Darfur, tropas vindas do norte, entre as quais a Frente Democrática do Povo Centro-Africano (FDPC) e a União das Forças Democráticas pela Reunificação (UFDR) – uma coalizão criada em 2006 no norte do país por partidários de Patassé, decepcionados com Bozizé e soldados inativos. O caos político era evidente e nenhum responsável de envergadura surgiu dessa união.

Michel Djotodia, muçulmano do norte, culturalmente próximo do Sudão e líder da UFDR, foi designado chefe de Estado por aclamação e colocado à frente de um Conselho Nacional de Transição (CNT) criado para essa finalidade. Sem grande legitimidade popular em Bangui, a Seleka deu provas de abertura ao acolher no seio do CNT membros da oposição e do antigo governo, e agora Nicolas Tiangaye no posto de primeiro-ministro. Este – uma figura da defesa dos direitos humanos e um dos raros agentes políticos considerados íntegros – tinha sido nomeado por ocasião dos acordos de Libreville (Gabão) de janeiro de 2013 entre a Seleka e o governo de Bozizé.

No entanto, apesar desses sinais de paz, outra realidade se estabeleceu em todo o território: os ex-rebeldes ditam sua lei, violenta. Os soldados da Seleka impõem o terror sob diversos pretextos, entre os quais o desarmamento da população. Casos de ódio religioso aparecem. Os ex-rebeldes importam consigo o islã do norte num sul majoritariamente católico. Ao prestar juramento, no dia 18 de agosto, Djotodia tornou-se o primeiro presidente muçulmano do país. Mas essa legalização nada muda, muito pelo contrário: em setembro, os incidentes e assassinatos se multiplicaram na capital, até levarem a totalidade dos moradores do bairro Boeing, vizinho do aeroporto, a se refugiar nas pistas de voo, bloqueando o tráfego, mas abrigando-se sob a proteção dos paraquedistas franceses que guardam as instalações. Depois, no dia 7 de setembro, a tomada de Bossangoa no noroeste pelos partidários de Bozizé, que atacavam os muçulmanos, provocou uma grande batalha e uma repressão anticristã cheia de mortes por parte da Seleka. A situação continua muito confusa nessa região, opondo agora comunidades religiosas.

A RCA encontra-se em ponto morto. A mecânica instável das microtrocas de víveres que tecem dia após dia a sobrevivência da maioria dos 4,5 milhões de centro-africanos está congelada pela insegurança. Por sua vez, na escalada de acontecimentos após março, a ONU só empregou uma parte de seu dispositivo. Mesmo se Djotodia denuncia algumas dessas violências, as tropas da Seleka parecem escapar a todo controle. Reforçadas pelo recrutamento de todo tipo de supletivos armados,3 elas têm sua autonomia velada pelos senhores da guerra, que não estão nem aí para um fantasmagórico poder central.

Aliás, por que estariam? Fora da capital, o Estado não existe mais. Nas regiões, esse desmoronamento não é recente. Em 2013, o país, maior que a França, tem a maioria de seu território desprovida de qualquer infraestrutura. Com exceção daquela que vive na região de Bangui, a população está entregue a si mesma, inclusive para se proteger de  predadores armados, como os bandos vindos de Camarões que atacam nas estradas. E, principalmente, o Estado parece virtual. Pouquíssimas escolas, quase nenhuma estrada, serviços de saúde embrionários, falta de energia elétrica, funcionários públicos frequentemente não remunerados num contexto de corrupção generalizada: a nação está em situação de fracasso.

Assim, a 1,5 mil quilômetros, na fronteira com o Chade e o Sudão, os habitantes de Birao, isolados pela ausência de estradas, não têm absolutamente nenhum contato com a capital. Essa região sempre ocupou o posto de base recuada das rebeliões nacionais. Mas o resto do território está pouco mais equipado, e as hordas da Seleka encontram ali um território propício para sua predação. O país está desmoronado, as populações sofrem e um drama humanitário de grande amplitude se apresenta. A ONU conta 230 deslocados, 62 mil refugiados na RDC e em Camarões, e 500 mil pessoas em situação de carência alimentar. Os doadores não se precipitam: os “pedidos de fundos consolidados” do Ocha foram financiados em apenas 30%. O esquecimento do país é manifesto, sintoma trágico de sua falta de interesse, incluindo o campo humanitário. Pois a RCA continua sendo um caso de “baixa intensidade”: não há massacres em grande escala, incêndio total ou fome generalizada. A infelicidade do país continua refletindo a imagem de seu peso econômico: negligenciável.

No plano diplomático, a situação também parece obscura. Nenhum dos “amigos” de Bozizé (França, Chade, África do Sul, Uganda) veio em seu auxílio, e a “comunidade internacional” brilhou por seu silêncio. É verdade que a França está, desde janeiro de 2013, engajada em outro território africano, o Mali. No entanto, o Exército tricolor, presente há muito tempo, sempre moldou a vida política colocando seus protegidos em seus postos, mesmo que fosse para em seguida destituí-los (ver a cronologia). O “abandono” de Bozizé não foi acompanhado por um apoio a seu sucessor, nem sequer por uma gota de interesse diplomático a respeito do futuro do país. No Mali, Paris fez de tudo para dar uma aparência legal à transição, obtendo, por intermédio da Comunidade Econômica dos Estados da África do Oeste (Cedeao), a nomeação de Dioucouda Traoré, presidente interino, antes de impor as eleições de julho de 2013. Nada disso para a RCA, a não ser uma folha em branco assinada, dada para a mediação da Ceeac, dirigida pelos presidentes Idriss Deby (Chade) e Denis Sassou Nguesso (República do Congo), pelas costas da União Africana. À frente de regimes autoritários, os dois chefes de Estado são aliados históricos de Paris.

Ascensão do Chade

O presidente do Chade foi um dos instigadores da tomada de poder de Bozizé em 2003 e, durante dez anos, seu principal apoio regional, alimentando com suas tropas as forças de interposição locais, entre as quais as da Fomac. No entanto, ao reconhecer agora a legitimidade da Seleka, sabendo-se até mesmo que os rebeldes chadianos foram a ponta de lança do ataque a Bangui, ele só tem uma certeza: ao participar da guerra do Mali ao lado dos franceses e ao se impor como principal interlocutor na RCA, Deby se posiciona como o grande líder da região. Ele restaura assim seu brasão manchado pela chuva de críticas que lhe foram dirigidas pelos defensores dos direitos humanos. É claro, Bozizé, refugiado em Paris, bem que lembra que foi eleito “democraticamente” e que retornará ao poder… Mas parece que a página já foi virada. Ao reconhecer o CNT desde o mês de junho, depois ao organizar um calendário de retorno à democracia com a instauração de eleições nos próximos dezoito meses, a Ceeac ratificou o golpe de Estado.

Entretanto, no meio de julho de 2013, os relatórios da missão conjunta da União Europeia e da ONU − dirigida por Kristalina Georgieva, comissária europeia da Cooperação e das Questões Humanitárias, e Valérie Amos, subsecretária-geral da ONU para as Questões Humanitárias − e as declarações do representante especial do secretário-geral das Nações Unidas, o general senegalês Babacar Gaye, começaram a balançar os gabinetes. Desde o início de agosto, a União Africana anunciou a substituição, até o fim do ano, da Fomac pela Missão Internacional de Apoio à África Central (Misca), dotada desta vez de 3,6 mil homens.4 Por sua vez, Fatou Bensada, procuradora da Corte Penal Internacional (CPI), declarou, no dia 7 de agosto, “sua preocupação a respeito dos crimes perpetrados na RCA”.

Afundada, a RCA é agora um imenso território completamente fora de controle. Será preciso ver se instalar no coração da África outro no man’s land, entregue a todo tipo de grupos extremistas, religiosos ou emanações de potências estrangeiras, encontrando ali um espaço de retiro? De Boko Haram ao Exército de Resistência do Senhor,5 sem omitir a Al-Qaeda no Magreb Islâmico (Aqmi), os pretendentes são muitos…

Uma história violenta

1o de dezembro de 1958

Barthélemy Boganda, presidente do Grande Conselho da África Equatorial Francesa (AEF), propõe a criação de uma República Centro-Africana composta de Ubangui-Chari, Chade e Gabão.

29 de março de 1959

Boganda falece num acidente não elucidado de avião.

13 de agosto de 1960

Proclamação da independência do antigo Ubangui-Chari, que passa a se chamar República Centro-Africana (RCA). O presidente David Dacko instaura um regime de partido único.

1o de janeiro de 1966

Golpe de Estado do coronel Jean Bédel Bokassa.

4 de dezembro de 1977

Bokassa é coroado imperador na presença do ministro francês da Cooperação, único governo ocidental representado.

21 de setembro de 1979

Bokassa é deposto em benefício de Dacko com a ajuda do Exército francês (operação “Barracuda”). A República é restabelecida. O multipartidarismo é autorizado.

1o de setembro de 1981

Golpe de Estado do general André Kolingba, que instaura um regime militar.

Setembro de 1993

Ange-Félix Patassé é eleito presidente e reeleito em 1999, sob um pano de fundo de corrupção, violência política e motim militar.

Fevereiro de 1997

Primeira missão da ONU na RCA.

16 de março de 2003

Golpe de Estado do general François Bozizé.

Primavera de 2005

Eleições presidenciais e legislativas ganhas por Bozizé e seus partidários.

2006

Início das rebeliões no norte.

24 de março de 2013

A Seleka tomou o poder. Michel Djotodia se tornou presidente do Conselho Nacional de Transição (CNT).

Notas:

1  A União das Forças Democráticas pela Reunificação (UFDR) de Michel Djotodia, a Frente Democrática do Povo Centro-Africano (FDPC) de Aboufaye Miskine, a Convenção dos Patriotas pela Justiça e pela Paz (CPJP) de Abdoulaye Issène e a Convenção Patriótica pela Preservação do Kodro (CSPK) de Moussa Dhaffane.

2  “En Centrafrique, stratégie française et enjeux régionaux” [Na RCA, estratégia francesa e objetivos regionais], Le Monde Diplomatique, fev. 2008.

3  Dos quais uma estimativa de 3,5 mil crianças soldados. Ocha, Grupo de Proteção, 6 set. 2013.

4  Há quinze anos, a RCA provoca a presença de forças de interposição com siglas labirínticas e de origens multilaterais diversas, mas frequentemente inofensivas: Minurca, Fomuc, Fomac, Eufor, Micopax e Misca.

5  Lord Resistance Army (LRA) de Joseph Kony, vindo da Uganda e instalado há muito tempo no leste do país.

(Le Monde Diplomatique Brasil)

Tags:
ÁfricaGuerraMundo
Top 10
Ver mais
Boletim
Receba Aleteia todo dia