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Liberalismo de esquerda e liberalismo de direita: não, a Igreja não apoia nenhum

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Mark Gordon - publicado em 23/01/17

Rótulos artificiais mascaram um fato: as duas orientações se apoiam em posições condenadas há muito tempo pela Igreja

Tanto a chamada “esquerda” quanto a chamada “direita” têm o péssimo e desonesto costume de se apossar da doutrina da Igreja como coisa sua, pregando, por própria conta, que eles mesmos, como “esquerdistas” ou “direitistas”, é que são os verdadeiros fiéis católicos – e instrumentalizando a Igreja como se ela fosse um espelho “mais ou menos espiritualizado” de uma ideologia “sócio-político-econômica” (e como se fosse mais herético questionar essa ideologia do que reduzir a pessoa de Cristo a um ícone a serviço de um “bloco” ou de outro). Com a piora do quadro crônico em que ocorre essa interpretação esdrúxula, manipuladora e interesseira da doutrina da Igreja como simples chancela de preferências “sócio-político-econômicas” particulares, trazemos à discussão este texto de Mark Gordon que pode servir como estímulo para a reflexão.

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Ao longo das últimas décadas, a política dos Estados Unidos tem se dividido, aparentemente, em dois campos opostos e irreconciliáveis: os “liberais” e os “conservadores” (ndr: esses termos equivalem, no espectro político brasileiro, aos clichês genéricos “esquerdistas” e “direitistas”, respectivamente).

Na esteira da bem-sucedida “estratégia do Sul”, de Richard Nixon, essa divisão imaginária acabou incorporada às identidades e ao autoentendimento dos dois principais partidos políticos do país, com os Democratas representando o “liberalismo” (ou a “esquerda”, como se diria no Brasil e em outros países latino-americanos) e os Republicanos o “conservadorismo” (ou a “direita”). Esse modelo binário é imposto até mesmo às interpretações sobre o Papa, com alguns “conservadores” acusando Francisco de “liberal” e alguns “liberais” garantindo que eles estão certos!

De um ponto de vista católico, essa divisão é artificial e baseada numa deturpação, às vezes deliberada, às vezes inocente, daquilo que o liberalismo é de fato, e, por extensão, de quem é e de quem não é liberal. O caso é que, nos Estados Unidos, há dois partidos liberais dominantes.

O Partido Republicano, longe de ser conservador, adota, na verdade, o que poderíamos chamar de “liberalismo de direita”, conhecido também como liberalismo clássico: um liberalismo essencialmente político e econômico.

Já o Partido Democrata segue o padrão do “liberalismo de esquerda”, que poderíamos chamar de liberalismo moderno, preponderantemente social e cultural.

A divergência desses dois liberalismos sobre questões específicas mascara as suas raízes comuns e as suas visões de mundo que se reforçam mutuamente.

Na sua carta apostólica “Octogesima Aveniens”, o Papa Paulo VI escreveu: “Encontra-se na própria raiz do liberalismo filosófico uma concepção errônea da autonomia do indivíduo no seu agir, na sua motivação e no exercício da sua liberdade”.

Para ouvidos modernos, tais palavras do pontífice podem parecer uma condenação do liberalismo sócio-cultural, com a sua retórica libertina que martela as teclas da “escolha”, dos “direitos” e da “autonomia”. Na verdade, o Santo Padre estava discutindo o liberalismo político-econômico, que ensinou o mundo moderno a implantar a linguagem do individualismo e, através dela, a comunicar um ponto de vista antropológico em fundamental desacordo com a concepção católica do homem e da sociedade.

Em seu livro “Holocaust of the Childlike”, o escritor Daniel Schwindt resume com clareza a afinidade retórica entre os dois liberalismos:

Estamos numa situação em que não resta nada diante de nós senão ser filisteus e fariseus. Um diz ‘O corpo é meu, me deixem em paz’, enquanto o outro diz ‘O dinheiro é meu, me deixem em paz’. As duas mentalidades podem se resumir à mesma filosofia do ‘é meu’, e, no fim, as duas são adeptas do liberalismo, acreditando zelosamente que o bem supremo reside na liberdade individual de fazer qualquer coisa que bem se entenda, envolva ela o próprio corpo ou as próprias finanças“.

As origens do liberalismo são fáceis de identificar. É um movimento moderno, que surgiu a partir do Iluminismo do século 17. Fundamentalmente, o Iluminismo foi um movimento de ideias caracterizadas por uma rejeição, ora explícita e vigorosa, ora nem tanto, da civilização cristã que o precedeu, especialmente da autoridade espiritual e temporal da Igreja católica. Como expressão dessa rejeição, os filósofos do Iluminismo procuraram formular uma base racional para a ética e para a moralidade, incluindo nisso o governo das sociedades humanas. Seu inimigo era a tradição, principalmente o que eles tachavam de “superstições” da Igreja. Enquanto a virtude tinha sido a principal preocupação da filosofia desde o período clássico e durante toda a idade medieval, o Iluminismo fez da liberdade, em especial da “liberdade da mente”, a sua preocupação central. O próprio liberalismo teve muitos pais, mas David Hume, Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau são os seus fundadores mais frequentemente citados. Deles todos, Locke foi a inspiração mais importante para os fundadores dos Estados Unidos, a primeira república liberal do mundo.

Seguindo Hobbes, Locke acreditava que o homem, no seu “estado natural“, é um sujeito solitário furiosamente egoísta, o que provoca, inevitavelmente, a supremacia do mais forte sobre o mais fraco, limitando assim a liberdade da maioria. Locke acreditava que a maioria, formada pelos fracos, criou os governos a fim de conter os fortes e reafirmar a liberdade como direito de nascença de todos. Suas ideias sobre a sociedade civil, a separação dos poderes e a tolerância religiosa pretendiam criar uma sociedade racional, em que a liberdade fosse maximizada e limitasse as agressões dos poderosos.

Mas, como C. B. MacPherson demonstrou em seu livro de 1962, “A Teoria Política do Individualismo Possessivo: de Hobbes a Locke”, a noção de liberdade de Locke era mecanicista, relativista e caracterizada pelo “individualismo possessivo”, que, para MacPherson, indicava o individual como a posse de si mesmo. Enquanto o pe. John Donne escreveu que “nenhum homem é uma ilha / todo homem é um pedaço do continente / uma parte do fundamental“, Locke dizia que cada homem é, sim, uma ilha, e que o propósito do Estado é garantir a regozijada independência de cada homem diante de todos os outros homens.

De acordo com MacPherson, Locke entendia a liberdade como “ser livre da vontade dos outros”, da dependência de outros e das obrigações para com a sociedade. “Se o que torna um homem um ser humano é ser livre das vontades dos outros”, escreveu MacPherson, “então a liberdade de cada indivíduo só pode ser legitimamente limitada pelas obrigações e regras necessárias para garantir as mesmas liberdades para os outros”. Este é o cerne tanto do liberalismo político-econômico da direita quanto da libertinagem sócio-moral da esquerda. Esta é a base tanto para uma forma de capitalismo que sacode a sociedade das suas bases morais tradicionais quanto para o aventureirismo moral que “descobre” infinitos novos “direitos” sexuais e sociais. Esta é a fonte do indiferentismo religioso e do secularismo. Este é o alicerce do consumismo e da mercantilização das pessoas humanas e dos relacionamentos.

Pressupôs-se, e ainda se pressupõe hoje em muitos lugares, que o liberalismo político e econômico não exerceria nenhum efeito sobre o caráter social e moral de um povo, a não ser, em todo caso, algum efeito de “reforço positivo”. Esta foi, certamente, a convicção do pe. John Courtney Murray, o teólogo jesuíta do século XX que hoje é um herói tanto para os liberais da direita, como George Weigel, quanto para os liberais da esquerda, como James Carroll. O pe. Murray é creditado com frequência como o inspirador da Declaração do Concílio Vaticano II sobre Liberdade Religiosa, a “Dignitatis Humanae”, na qual a Igreja adotou uma concepção distintamente americana de liberdade religiosa. Menos conhecido é o papel do pe. Murray como inspirador de outro “concílio”, conhecido como “o Conclave de Hyannisport”, de 1964. A escritora Anne Hendershott descreve o cenário:

Numa reunião no complexo dos Kennedy em Hyannisport, Massachusetts, em um dia quente do verão de 1964, a família Kennedy e seus assessores e aliados recebiam um coaching dos principais teólogos e professores universitários católicos sobre o modo de aceitar e promover o aborto ‘de consciência limpa’.

O ex-padre jesuíta e ex-professor de ética da Universidade de Washington, Albert Jonsen, relembra a reunião em seu livro ‘O Nascimento da Bioética’ (Oxford, 2003). Ele descreve o encontro que reuniu os reverendos Joseph Fuchs, teólogo moral católico, Robert Drinan, então reitor da Boston College Law School, e três teólogos acadêmicos, Giles Milhaven, Richard McCormick e Charles Curran, para orientar a família Kennedy a redefinir o apoio ao aborto.

Jonsen escreve que as conversas em Hyannisport foram influenciadas pela posição de outro jesuíta, o pe. John Courtney Murray, posição essa que ‘distinguia entre os aspectos morais de uma questão e a possibilidade de aprovar uma legislação sobre aquela mesma questão’. Chegou-se ao consenso, no ‘Conclave’ de Hyannisport, de que os políticos católicos ‘podem tolerar uma legislação que permite o aborto em determinadas circunstâncias, como no caso em que os esforços políticos para reprimir esse erro moral podem causar riscos maiores para a paz e para a ordem social”.

O próprio pe. John cristalizou o que poderíamos chamar de “Princípio de Murray” num memorando de 1965 enviado ao cardeal Spellman, de Boston. Spellman tinha pedido a Murray um parecer sobre a descriminalização da contracepção, que estava sendo proposta no Estado de Massachusetts. No memorando, Murray escreveu: “Não é função do direito civil impor tudo o que é moralmente correto nem proibir tudo o que é moralmente errado. Em razão da sua natureza e finalidade, como instrumento da ordem na sociedade, o propósito do direito se limita à manutenção e à proteção da moralidade na esfera pública. Questões de moral privada ultrapassam o escopo do direito: elas devem ser deixadas para o âmbito da consciência pessoal“.

Este mesmo argumento tem sido usado ao longo dos últimos quarenta anos em relação a tudo, desde a pornografia até o casamento entre pessoas do mesmo sexo, passando, é claro, pelo aborto.

Pode nos fazer pensar, a este respeito, o seguinte fato: Murray, que se horrorizava com o aborto e ficaria chocado com a ideia do casamento homossexual, parece nunca ter considerado que os pressupostos antropológicos embutidos no liberalismo político-econômico e concretizados em dispositivos constitucionais estadunidenses como a Primeira Emenda iriam acabar permeando a vida social e moral dos Estados Unidos (para aprofundar no assunto, eu recomendo o ensaio do editor da “Communio”, David Schindler, “Religious Truth, American Freedom, and Liberalism: Another Look at John Courtney Murray”.

Acontece, porém, que, depois de dois séculos, as propriedades do liberalismo clássico, muito sutis, mas ainda assim implacavelmente corrosivas, fizeram o seu estrago.

A definição de liberdade proposta por Locke como “ser livre das vontades dos outros” se transformou em ser livre do bem comum, da lei natural, dos ensinamentos da Igreja e até mesmo das obrigações de uma mãe para com seu próprio filho.

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