Quase todas são desconhecidas do grande público – inclusive dos cristãos, que, certamente, as apreciariam
Filmes cuja história está diretamente ligada ao cristianismo têm repercutido em tempos recentes. “Silence” (“Silêncio”, de Martin Scorsese) abordou a missão evangelizadora de dois sacerdotes católicos no Japão brutalmente repressivo do século XVII. “A Promessa” nos leva até o drama dos cristãos armênios esmagados pelo genocídio perpetrado pelos otomanos no início do século XX. As expectativas do início de 2018 estão em “Paulo, Apóstolo de Cristo“.
Quando se anunciam produções como essas, costuma ganhar espaço nas redes sociais a discussão sobre quais filmes abordam ou deixam de abordar adequadamente a fé cristã. A este propósito, compartilhamos com os leitores o seguinte artigo de Philip Jenkins, publicado em 2014. Há nele considerações e dicas enriquecedoras.
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De todos os pontos de vista, a Europa se tornou, ao longo dos últimos quarenta anos, um lugar muito mais laico, inclusive em comparação com os Estados Unidos. Soa estranho, portanto, que, só na última década, os cineastas europeus tenham produzido algumas obras extraordinariamente belas com temáticas religiosas, obras que fazem declarações poderosas sobre santidade e martírio, pecado e redenção e até mesmo sobre monaquismo e peregrinação. A maior parte dessas obras ainda é desconhecida no continente americano, inclusive para os cristãos que, certamente, as apreciariam. Sendo assim, vou destacar alguns dos exemplos que considero mais interessantes.
De longe, o mais significativo é o filme francês “Des hommes et des dieux” [“Homens e deuses”], de 2010, dirigido por Xavier Beauvois, classificável entre as melhores obras de arte sacra dos tempos modernos. O filme se enraíza em fatos reais e conta a história dos monges trapistas da casa argelina de Tibhirine. Sete deles foram assassinados em 1996, provavelmente por guerrilheiros islâmicos.
É dolorosamente fácil de imaginar que um filme desses, sobre o heroísmo cristão, pudesse ter sido produzido na era clássica de Hollywood, na década de 1940. Pense no padre católico de Henry Fonda no filme “O Fugitivo“, de 1947, que não podia entrar numa sala sem luzes celestiais e coros angélicos. Nenhum desses elementos, é claro, aparece em “Homens e deuses“, que apresenta um grupo de monges idosos e muito humanos, firmemente convictos de que a sua vocação exige que eles permaneçam nos seus postos até o fim.
“Homens e deuses” conquistou elogios internacionais e foi respeitosamente bem avaliado pela mídia norte-americana. Muito menos conhecidas, por sua vez, são algumas obras menores, embora igualmente capazes de nos fazer pensar. Uma delas é “Letters to Father Jacob” [“Cartas ao padre Jacó“], de 2009, dirigida por Klaus Härö. É uma produção da Finlândia, país entre os mais radicalmente laicos da Europa. O filme conta a história de Leila, condenada por homicídio, ácida e cínica, mas em liberdade condicional e trabalhando como secretária de um pároco cego que vive sozinho. O ambiente é luterano, mas, para olhos destreinados, parece católico.
No começo do filme, ela detesta essa tarefa e despreza o pároco ancião. Cada vez mais, no entanto, ela vai se surpreendendo ao ver o enorme volume de cartas que o padre recebe todos os dias, todas com pedidos de oração e de conselhos. O padre Jacó é um intercessor, um homem cujas orações já se mostraram eficazes muitas vezes, um homem que doa de bom grado as suas economias para ajudar uma mulher que sofreu abusos. O filme, que também foge aos excessos de Hollywood, é outro retrato magnífico da santidade moderna. Em última análise, é também a história de como Leila encontra o seu caminho, altamente improvável, rumo à redenção.
De nenhuma forma devemos supor que todos os filmes recentes ofereçam essas mensagens positivas. O cinema europeu moderno tem uma tradição anticlerical muito forte. Uma abundância de filmes europeus retrata os crentes cristãos como tolos ou fanáticos. Mas até algumas produções mais ásperas oferecem mensagens gratificantes. Uma delas é “Lourdes” (2009), de Jessica Hausner, que descreve a peregrinação de uma mulher que sofre de esclerose múltipla. Ela acredita que recebeu a graça da cura, embora o filme seja ambíguo sobre a natureza da sua experiência. “Lourdes” é uma obra que pode ser interpretada de várias maneiras diferentes e que oferece muitas imagens do mercantilismo religioso crasso e da piedade simplista. No final, porém, pode-se entender melhor um lugar como Lourdes, bem como os sonhos e as aspirações que levam milhões de pessoas a se dirigirem até o santuário.
Quando você começa a ver um filme, no geral consegue identificar o seu gênero com bastante facilidade, o que lhe dá uma ideia muito próxima de como ele vai continuar. Confie em mim: você não vai precisar forçar a mente para descobrir o que está para acontecer em qualquer momento de “Guardiões da Galáxia“. Mas a previsibilidade é de pouca valia quando se vê um filme dinamarquês como “The Monastery: Mr. Vig and the Nun” [“O mosteiro: o Sr. Vig e a freira”], de 2006, dirigido por Pernille Rose Grønkjær.
O enredo relata uma história verídica. Jørgen Vig é um professor aposentado ranzinza, solteiro da vida toda, que vive num castelo dinamarquês em ruínas parciais. Sem razão aparente, ele resolve doar o castelo para a Igreja Ortodoxa Russa, a fim de que seja fundado ali um convento. A irmã Ambrosia é a freira russa que chega ao castelo com algumas companheiras para avaliar a viabilidade do projeto. O filme aborda a tortuosa relação entre o professor e a freira, que, inteligente e altamente prática, tenta fazer o melhor em meio a uma situação desastrosa.
Mas por acaso já não vimos o desenrolar-se de um enredo desse tipo milhares de vezes?
Não. Nunca.
Num primeiro momento, até somos tentados a achar que o filme relata apenas um encontro bizarro entre caracteres incompatíveis. Mas, pouco a pouco, vamos perceber o que de fato está em jogo. O projeto do convento parece condenado ao fracasso, mas Ambrosia continua a ser, dentre as freiras, a única determinada a trabalhar até o fim. É quando percebemos o que ela de fato quer, qual é o objetivo a que ela não vai renunciar: mesmo que leve muitos anos, ela vai ficar junto do Sr. Vig até o fim, até garantir que ele encontre a salvação. Assim como “Letters to Father Jacob“, este filme se transforma num estudo espiritual verdadeiramente comovente.
Ao assistir a esses filmes, podemos nos perguntar como é que tantos deles vêm não só da Europa, mas justamente dos cantos mais laicos daquele continente. Os cineastas trabalham em cima de séculos de capital espiritual acumulado ou será que o trabalho deles sugere uma crescente inquietação religiosa entre os artistas e intelectuais da Europa de hoje?
Enquanto pensamos no assunto, vale a pena dedicar a nossa atenção a essas obras de arte.
Até porque há muito mais, em termos de filmes religiosos, do que “Noé“.
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