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Existem “segredos” cristãos reservados para uma elite iniciada?

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Miguel Pastorino - publicado em 20/10/18

O esoterismo é contrário à natureza do cristianismo

Existe quem se diz “cristão” e pratica esoterismo e várias formas de ocultismo, mas não é o que vamos discutir neste artigo. Em vez disso, vamos perguntar: o cristianismo é uma religião esotérica? Existe uma doutrina oculta, dentro da fé cristã, reservada para uma elite secreta e iniciada? A resposta é negativa.

Muitos estão convencidos de que o cristianismo tem “segredos” em relação ao conteúdo religioso, como se houvesse um “cristianismo esotérico”.

A verdade é que tal coisa – uma reserva de verdades doutrinárias escondidas que apenas um grupo de elite conheceria – nunca existiu no passado, nem existe agora. Essa é uma fantasia de alguns fãs de esoterismo, que procuram segredos escondidos em cada símbolo e doutrina. Essa tendência é intensificada hoje em dia pelo “esoterismo das massas” da Nova Era e por romances como os de Dan Brown, apesar do fato de que eles não possuem nenhum fundamento real.

Muitos daqueles que se autodenominam “cristãos” na verdade não são (você não pode acreditar em Cristo e, ao mesmo tempo, afirmar as ideias opostas à sua mensagem, como a reencarnação). Para os cristãos, o ponto de partida de nossa fé é a aceitação do que Deus revelou – não o que Ele esconde. Para os cristãos que creem em Cristo, Deus já revelou tudo o que é necessário para a salvação da humanidade.

Não há segredos no cristianismo?

É verdade que cada instituição tem alguns segredos em questões que exigem prudência e discrição. Nesse sentido, podemos falar de sigilo na Igreja. Mas, em relação ao conteúdo religioso, o cristianismo é exotérico (aberto a todos); nasceu e continua a existir como uma religião que é revelada para todas as pessoas e enviada a todas as pessoas, universal (Mt 28,20 e seguintes), missionária e sem segredos.

O Magistério da Igreja é composto de documentos públicos abertos, que qualquer um pode ler. As declarações e doutrinas oficiais são acessíveis a todos. Tudo é publicado, em matéria de fé e doutrina. Não há nada que precise ser escondido. O esoterismo – como uma atitude espiritual elitista – é contrário à natureza do cristianismo.

Ao longo da história, surgiram tendências buscando juntar doutrinas gnósticas e esotéricas com o cristianismo, como o gnosticismo nos primeiros séculos após Cristo, o surgimento medieval da alquimia e da Cabala e os movimentos ocultos do Renascimento (século XVI). Essas tendências influenciaram vários intelectuais e artistas. [1]

Seu objetivo era inventar um “cristianismo esotérico” ou um “esoterismo cristão”, e de fato havia – e são – esoteristas que vivem uma forma sincronista do cristianismo. Consequentemente, símbolos e conceitos tomados da alquimia e do esoterismo podem ser encontrados em muita literatura, muitas obras de arte e até mesmo nas igrejas medievais.

Mas nunca houve uma forma esotérica do cristianismo, apesar de haver autoproclamados “cristãos” que, tendo entrado no esoterismo, se propuseram a dar novos significados às verdades da fé cristã, reinterpretando seus símbolos e doutrinas e professando “esoterismo cristão”, o que é uma contradição.

Características do esoterismo ocidental

Embora tenha havido muitos e variados movimentos esotéricos ao longo da história, podemos distinguir alguns traços comuns ou definidores: [2]

1) Equivalência ou coincidência entre partes do universo visível e invisível. Por exemplo: os esotéricos geralmente se referem a 7 metais, 7 planetas, 7 partes do corpo, 7 chacras etc. Quando eles leem a Bíblia, eles procuram essas coincidências, para interpretar a Bíblia “esotericamente”.

2) Eles acreditam que o universo e toda a natureza são um ser vivo com uma espécie de alma cósmica (fogo escondido ou energia).

3) Imaginação criativa e mediação simbólica: procuram chegar ao divino através de intermediários imaginários ou reais. Este recurso à mediação de todos os tipos é claro: ritos, símbolos tirados de todas as religiões, mandalas e até mesmo adotando toda variedade de supostas “entidades espirituais”.

4) A experiência de transmutação. Este termo, tirado da alquimia, refere-se neste contexto a como um novo modo de viver e ser, e é procurado através de “iniciações”.

Existem outras características complementares que não estão presentes em todos os casos, mas que são hoje visíveis na grande maioria dos movimentos esotéricos conhecidos.

Uma dessas características é a prática da concordância: o desejo de harmonizar diferentes tradições, sejam elas filosóficas ou religiosas – especialmente juntando o oriental com o ocidental. Também podemos adicionar a transmissão direta de mestre para discípulo de teorias e práticas esotéricas, que também acompanha frequentemente uma série de graus ou etapas no processo de iniciação.

Entre suas doutrinas-chave está uma visão panteísta da divindade, segundo a qual toda a realidade é unificada; a partir disso, segue uma ideia de que todas as coisas “emanam” de Deus, na qual não há distinção entre criador e criatura.

Eles proclamam a unidade transcendental de todas as religiões, ou seja, a ideia de que todas as religiões concordam no nível mais profundo (esotérico) e que o que mais importa é esse núcleo “místico” compartilhado, não as formas externas de ritos e doutrinas.

No entanto, qualquer pessoa que realmente estuda profundamente as grandes religiões históricas, concentrando-se nas doutrinas verdadeiramente fundamentais, descobrirá que são radicalmente diferentes um do outro. A ideia ingênua de que todas as religiões são realmente as mesmas é uma tese superficial que ignora o núcleo atual de cada religião. As formas externas e os princípios éticos universais são precisamente os que tendem a ser compartilhados entre elas, mas não os seus núcleos de crença mais profundos.

A origem: um mundo de fantasia

Embora o adjetivo “esotérico” (oculto, secreto) seja muito antigo e tenha tido muitos usos, o substantivo “esoterismo” apareceu recentemente no século XIX no contexto de movimentos ocultos modernos. [3]

Historicamente, não há continuidade de geração em geração na tradição esotérica ocidental, ao contrário do que seus defensores argumentam em algumas ocasiões. Diferentes épocas históricas viram um ressurgimento de ideias semelhantes e reinterpretações religiosas, mas sem uma conexão histórica real entre elas.

Embora as doutrinas gnósticas tenham desaparecido durante séculos, influenciaram durante a Idade Média através do hermetismo na alquimia, na Cabala e em certas escolas filosóficas. Da mesma forma, eles procuraram influenciar o cristianismo, criando oposição ao cristianismo ortodoxo. Um confronto era inevitável, já que o sincretismo desses movimentos ameaçava diluir a fé cristã em um pseudo-religioso magma, como aconteceu no século XVI.

Hoje também, no movimento da Nova Era, as seitas ocultas metafísicas e pós-modernas tendem a apresentar a fé cristã como um misticismo esotérico que foi racionalizado pela hierarquia católica. Ironicamente, sua versão do esoterismo é contraditória com o esoterismo histórico, já que o conhecimento oculto é elitista, e o movimento da Nova Era popularizou-o para as massas.

Embora certamente possamos falar de um algum esforço sério para desenvolver o esoterismo no Ocidente (Boheme, Swedenborg, Paul Le Cour etc.), não é verdade que suas origens são tão historicamente remotas como é apresentado na literatura esotérica.

A maioria dos conteúdos desses movimentos data do Renascimento, mas se procura estabelecer suas origens em histórias que remontam à mitologia antiga, como é o caso de alguns maçons e, acima de tudo, dos Rosa-cruzes.

Eu digo “alguns”, porque muitos maçons reconhecem que a Maçonaria se originou em associações de construtores medievais, e não na Torre de Babel, nem no Templo de Salomão, nem nos Templários, como alguns imaginam.

Um caso de confusão criado pela literatura esotérica, entre outros, é o Corpus Hermeticum, uma obra redescoberta por Ficino no século XVI, escrita entre os séculos II e IIII, com ingredientes gnósticos, alquimistas, orientais, esotéricos e neoplatônicos próprios do mundo eclético de religiões e filosofias que estavam em circulação em Alexandria nos séculos II e III. [4]

Os autores esotéricos gostam de declarar que este livro é muito antigo, oferecendo datas como o século VI antes de Cristo; no entanto, é uma obra escrita milhares de anos depois. O esoterismo invariavelmente afirma ter raízes onde não tem, e tende a rastrear suas genealogias de volta às idades remotas em uma mitologia que é reinventada com cada nova geração de proponentes.

René Guénon e a fraude do teosofismo

O esotericista franco egípcio René Guénon era um grande intelectual do ocultismo moderno, respeitado não só pela erudição, mas também pela honestidade acadêmica. Ele desmascarou centenas de sociedades secretas fraudulentas que fizeram de tolos seus iniciados europeus.

Guénon denunciou e destruiu intelectualmente a fraude praticada por uma mulher louvada pelo ocultismo: Madame Blavatsky e sua Sociedade Teosófica [5]. No entanto, as pessoas têm lembranças curtas, que trabalham em favor dos pseudoprofetas e suas fraudes, como ocorreu com o espiritismo moderno. A credulidade continua a aumentar.

René Guénon abandonou o esoterismo ocidental diante de tanta decepção e fantasia, e acabou convencido de que apenas as religiões orientais continham conhecimentos verdadeiramente esotéricos, bem como uma autêntica tradição esotérica.

Uma das expressões da nossa crise cultural atual é o novo surgimento do gnosticismo e do esoterismo, manifestado no sucesso de toda e qualquer literatura relacionada a esses temas: a magia, os evangelhos apócrifos, a autoajuda, a alquimia, o hermetismo… Se a verdadeira história do esoterismo eram mais conhecidas, suas ilusões mágicas desapareceriam com muita rapidez.

E os que se chamam de “esoteristas cristãos”?

Muitos esoteristas modernos falam abertamente sobre o “esoterismo cristão”, mas é simplesmente a sua reinterpretação do cristianismo, assim como suas reinterpretações de certas antigas correntes filosóficas ou religiões do Oriente, que eles se apropriam descuidadamente de acordo com seu gosto pessoal.

O fato é que o cristianismo nunca foi esotérico, e sua natureza fortemente missionária faz dele uma religião aberta, cuja mensagem é para todos, e não para uma elite que busca coincidências simbólicas ou mundos invisíveis.

Ninguém pode negar que, ao longo da história, houve pessoas que viveram o cristianismo em um nível social, mas que praticaram o esoterismo, e isso continua mesmo hoje. Na Idade Média, mesmo entre as pessoas que eram oficialmente cristãs, judeus ou muçulmanas, as correntes de pensamento gnósticas e mágicas viveram e experimentaram ressurgimentos ocasionais.

Hoje, confrontando com o esoterismo para as massas, devemos nos perguntar se o cristianismo não teria negligenciado sua própria medida de misticismo e mistério. Talvez tenha ido ao mar na sua adaptação racionalista à modernidade e, consequentemente, as pessoas sedentas de sentido e experiência se voltaram ao irracionalismo, à magia e ao oculto.

[1] ELIADE, Mircea (1976). Occultism, Witchcraft and Cultural Fashions. New York: The Crossroad Publishing Company.

[2] GUERRA GÓMEZ, Manuel. (2005). Diccionario enciclopédico de las sectas. Madrid: BAC.

[3] FAIVRE, A. – NEEDLEMAN, J. (1995). Modern Esoteric Spirituality.New York: The Crossroad Publishing Company. p. 10 [Spanish edition]

[4] See ELIADE, Mircea (1969). The Quest: \ History and Meaning in Religion. London: University of Chicago Press. Pages 59-60 [Spanish edition].

[5] GUENÓN, René (2003). Theosophy: History of a Pseudo-Religion. New York: Sophia Perennis Haz.

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