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Os debates sobre a Eucaristia e a nossa mentalidade contemporânea

Santíssima Eucaristia

Francisco Javier Diaz | Shutterstock

Santíssima Eucaristia

Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 27/08/23

A mentalidade contemporânea nos torna cada vez menos capazes de contemplar a ação de Deus no mundo. Entenda:

Muitos anos atrás, um sacerdote já idoso, homem de grande santidade, foi dar a comunhão a meu filho pequeno, que estava doente. Na hora, minha filha mais nova ficou olhando fixamente para o irmão que comungava. O padre perguntou-lhe se ela queria comungar e se sabia o que era aquele pãozinho. Ela respondeu que queria e que o pãozinho era o Jesus.

O sacerdote, então, me explicou que ele havia sido formado antes do Concílio Vaticano II, estava ciente que hoje em dia se valoriza muito a formação e o conhecimento que a criança tem na hora que faz a primeira comunhão, mas ele, como sacerdote, devia ministrar os sacramentos segundo a vontade de Deus. Se a menina, mesmo pequena, sabia que a hóstia consagrada era Cristo e queria comungar, era porque o próprio Jesus queria se dar a ela. Cabia a ele, como sacerdote, cumprir a vontade do Senhor e ministrar-lhe a comunhão naquele momento. A mim, como pai, cabia providenciar a adequada formação dela, assim que tivesse a idade certa, para que fizesse a primeira comunhão junto com as demais crianças.

Um acontecimento recente, fez com que eu me recordasse desse caso. Aliás, ele me volta à mente sempre que ouço algum debate acalorado ou escandalizado sobre a forma adequada de se comungar, recebendo a hóstia na mão ou na boca, de pé ou de joelhos, em uma (só pão) ou duas espécies (pão e vinho). Não é minha função aqui entrar num debate sobre normas litúrgicas, mas essas discussões podem ser a manifestação de uma mentalidade contemporânea, bem pouco católica, mesmo quando a intenção é a mais pia possível.

Maravilhar-se diante dos sinais de Deus

Volto à lógica do velho sacerdote: não cabia a ele julgar como Deus queria que as coisas acontecessem, devia apenas estar atento aos sinais que Ele enviava, para melhor obedecê-Lo. A ação divina sempre tem algo de surpreendente aos nossos olhos, não podemos querer encerrá-la em nossos esquemas – e podemos reduzir até mesmo os ensinamentos da Igreja segundo nossos esquemas. O respeito devido a Deus não se manifesta, em primeiro lugar, numa subordinação às normas, mas sim na abertura obediente aos Seus sinais no mundo (sinais esses que frequentemente passam pelas normas, mas sempre as transcendem).

A mentalidade contemporânea nos torna cada vez menos capazes de contemplar a ação de Deus no mundo. A própria religião frequentemente torna-se uma construção humana, que parte de princípios, ritos e preceitos criados pelos religiosos. A forma pela qual vivemos o cristianismo passa a ser uma característica identitária nossa e nos escandalizamos quando alguém vive o mesmo cristianismo de um modo diverso. Insisto que, aqui, não estou me detendo na questão de qual é o modo certo (ou mais certo) de praticar a doutrina católica, mas sim na perda da capacidade de se abandonar ao mistério de Deus no mundo, seja qual for a forma com a qual se apresente a nós em determinada situação.

Os sacramentos são sinais sensíveis da ação de Cristo, por meio de sua Igreja (Catecismo da Igreja Católica, CIC 1084). Compreendê-los e vivê-los dignamente implica sem dúvida no respeito às normas e procedimentos que a autoridade eclesial estabelece – mas, antes disso, somos chamados a reconhecer que é Deus agindo em sua misericórdia para conosco. Sem a gratidão maravilhada pela obra do Senhor em toda a criação e em nossa vida, podemos seguir à risca os preceitos, mas ainda não estaremos nos entregando efetivamente ao Seu amor.

Quem vê o mundo com os olhos do velho sacerdote do início desse texto, com certeza procura seguir os preceitos da Igreja da melhor forma que consegue, mas vive essa obediência com absoluta liberdade e amor. Para tal pessoa, a realidade é sempre mais leve e luminosa, pois está verdadeiramente se entregando Àquele que é manso e humilde de coração, que propõe um jugo suave e um fardo leve (Mt 11, 29-30).

A liberdade dos que se submetem ao Senhor

A autoridade religiosa à qual os católicos devem prestar obediência é constituída pelo Papa em comunhão com os bispos (cf. CIC 874ss). Frequentemente, no entanto, encontramos fiéis que preferem seguir essa ou aquela indicação de determinado padre ou líder religioso do que seguir as indicações da autoridade eclesial.

No fundo, trata-se de uma dúvida sobre a própria presença de Deus em sua Igreja. Quando o fiel prefere seguir uma liderança particular, ao invés da autoridade eclesial, está indiretamente duvidando da própria presença de Deus em sua Igreja – e que, portanto, pode agir segundo os seus próprios critérios (frequentemente até mais rígidos do que aqueles da Igreja, que sempre procura abraçar e acolher a todos).

Mas a hierarquia também não pode errar? Sim, pode, mais ainda quando pensamos na conduta pessoal de um sacerdote ou de um bispo, seres humanos falíveis como todos nós. Devemos procurar sempre a verdade e a conduta justa, isso também é verdade. Contudo, existem formas adequadas e formas inadequadas de fazer as coisas.

Se Deus age no mundo e na Sua Igreja, nosso primeiro objetivo é encontrar os sinais da Sua presença e da Sua vontade – e isso diz respeito à nossa santidade e não à santidade dos outros. Quando ficamos mais preocupados em dizer que os outros estão errados do que em saber como nós mesmos podemos fazer certo, alguma coisa está errada em nós…

A seguir, se percebemos claramente um erro na comunidade e/ou na hierarquia, devemos nos comprometer a dar um testemunho cada vez mais luminoso, pois é a luz de nosso testemunho (e não a raiva de nossos juízos) que ajudarão nossos irmãos a serem melhores.

Deus faz maravilhas e não deixa que aquele que deseja segui-Lo sinceramente se perca, por mais voltas e desvios faça. Era com essa tranquila liberdade que aquele sacerdote decidiu dar a comunhão para minha filhinha. Muitos anos depois, só posso atestar que ele estava certo.

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