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Qual é a diferença entre eutanásia, distanásia e ortotanásia?

Archie Battersbee

Media Drum/East News

Tom, irmão mais velho de Archie, o visita no hospital

Francisco Vêneto - publicado em 09/08/22

O caso do menino Archie Battersbee trouxe à tona várias dúvidas entre católicos sobre que tipo de morte lhe foi imposta

Eutanásia, distanásia e ortotanásia são três conceitos de grande importância na bioética, todos eles derivados da palavra grega “thánatos”, que quer dizer “morte”.

O recente caso do menino Archie Battersbee, que teve o seu suporte vital desligado por imposição judicial à revelia de seus pais no Reino Unido, trouxe à tona várias dúvidas entre católicos sobre que tipo de morte foi imposta à criança de 12 anos.

Vejamos qual é a diferença entre os três conceitos.

Eutanásia

São João Paulo II comenta no parágrafo 65 da sua carta encíclica “Evangelium Vitae” (“O Evangelho da Vida”): a eutanásia é “uma ação ou omissão que, pela sua natureza e nas suas intenções, provoca a morte com o objetivo de eliminar o sofrimento”.

Importante observar que a eutanásia nem sempre é ativa: ela também pode ser praticada por omissão — ou seja, por deixar de fazer algo que, nas circunstâncias em questão, seria moralmente obrigatório.

A eutanásia, portanto, também é praticada quando se negam determinados cuidados médicos sem os quais se sabe que o doente vai morrer. Este foi o caso da norte-americana Terri Schiavo. Ela estava em estado vegetativo permanente até que, em 2005, seu marido conseguiu na Justiça uma ordem para que o hospital interrompesse a sua hidratação e nutrição artificiais. Que se saiba, Terri não recebeu nenhuma substância que acelerasse a sua morte; mesmo assim, ela sofreu eutanásia: após uma longa agonia, morreu de fome e de sede. O caso teve grande repercussão mundial.

Além da forma (comissiva ou omissiva), a eutanásia se caracteriza também pelas intenções: o que formalmente a configura é a intenção de provocar a morte de outra pessoa com o objetivo de eliminar o sofrimento dela (cf. EV 56). O que diferencia a eutanásia dos outros casos de mortes provocadas é a intenção, aparentemente boa, de acabar com o sofrimento do paciente – mas provocar a morte de alguém é sempre uma forma de assassinato, inclusive quando se trata de um assassinato “dentro da lei”, como podem ser os casos do aborto, da pena de morte e da própria eutanásia.

Distanásia

Uma espécie de “extremo oposto” da eutanásia é a distanásia, também chamada de “obstinação terapêutica”. Ela consiste em recusar-se teimosamente a aceitar que o paciente está morrendo, além de buscar ativamente, a qualquer custo, meios desproporcionados e inúteis de tentar fazê-lo ficar vivo à força, quando já não há nenhuma perspectiva viável de impedir a sua morte.

Importante: não estamos falando de um caso em que ainda existam chances, por mais remotas que sejam, mas sim dos casos em que simplesmente não há mais nada a ser feito para evitar a morte e, mesmo assim, insiste-se insensatamente em forçar o recurso a meios ineficazes para manter o doente vivo a todo custo.

Ortotanásia

É o que acontece quando simplesmente se aceita, com realismo e sensatez, o estado terminal do paciente, reconhecendo-se que as capacidades humanas não conseguem mais impedir a iminência da morte. A ortotanásia, portanto, se recusa a cair na obstinação terapêutica (distanásia), mas também se recusa a intervir por ação ou omissão a fim de acelerar a morte do paciente (eutanásia).

Tanto a distanásia (negar-se a aceitar a morte com serenidade e sensatez) quanto a eutanásia (provocar a morte propositalmente, ainda que com a alegada boa intenção de eliminar o sofrimento do doente) são pecados: a distanásia é uma forma de desespero, que é falta de confiança em Deus, e a eutanásia é uma forma de assassinato, porque causa diretamente a morte de outro. A atitude moralmente exigível do ser humano é a de defender a vida até a última chance, e, ao mesmo tempo, a de aceitar a morte com sensatez quando ela se mostra inevitável: portanto, sem causá-la e sem lutar desproporcionadamente contra ela.

E qual foi o caso de Archie Battersbee?

O menino britânico de 12 anos sofreu danos cerebrais irreversíveis em abril deste ano e, desde então, esteve internado no Royal London Hospital para receber suporte artificial à vida. Alegando que não havia mais nada a ser feito para reverter o quadro, que diagnosticavam como morte cerebral, os médicos propuseram o desligamento do suporte vital.

Os pais de Archie, Paul Battersbee e Hollie Dance, discordaram dos médicos, ressaltando que o coração do filho continuava a bater e relatando que ele chegava a segurar a mão da mãe. Paul e Hollie queriam manter ligados os aparelhos que forneciam respiração, nutrição e hidratação artificiais ao menino, por mais que não houvesse perspectivas médicas de recuperação. Eles queriam exercer o seu direito de prestar todos os cuidados possíveis a Archie até que o seu coração parasse naturalmente de bater, sem nenhuma intervenção humana voltada a acelerar a extinção dos seus sinais vitais.

Começou então a batalha nos tribunais, já que o hospital solicitou judicialmente que os aparelhos fossem desligados à revelia dos pais do menino.

O Supremo Tribunal britânico, ao avaliar um dos recursos interpostos pela família contra o desligamento dos aparelhos, reconheceu que “mesmo que o tratamento de manutenção da vida fosse mantido, Archie morreria no decorrer das próximas semanas por falência de órgãos e insuficiência cardíaca”.

Dito de outra forma: a própria justiça admitiu que a morte de Archie se consumaria naturalmente, num espaço relativamente curto de tempo. Ainda assim, os magistrados negaram o pedido da família do menino, que solicitava justamente que a morte de Archie não fosse antecipada à força. A corte preferiu impor o desligamento dos aparelhos, basicamente porque sim.

Na manhã do último sábado, 6 de agosto, quando os médicos interromperam a administração de medicamentos às 10h, Archie se manteve vivo e “em níveis estáveis durante duas horas”, até que lhe foi retirada completamente a ventilação artificial. O óbito foi declarado pouco após as 12h.

Para os apoiadores do desligamento compulsório do suporte vital, a postura dos pais de Archie constituiria obstinação terapêutica – ou distanásia, já que os danos cerebrais do menino eram irreversíveis e, supostamente, ele já estava cerebralmente morto, embora mantivesse outras funções vitais ativas. Entretanto, refutando a versão de que Paul e Hollie se aferrassem à distanásia, é necessário registrar que eles não estavam procurando forçar uma prorrogação da vida do filho para além da sua expectativa natural de resistência: queriam apenas que a sua morte não fosse compulsoriamente antecipada, o que passa longe de ser a mesma coisa.

Por isso mesmo, as pessoas contrárias ao desligamento compulsório destacam que a eliminação do suporte à vida de Archie teria o explícito objetivo de acelerar a extinção de todos os seus sinais vitais – ou seja, antecipar forçosamente a sua morte em vez de aceitar o ritmo natural de autoesgotamento dos seus recursos vitais, que, conforme a própria justiça havia reconhecido, era um processo inevitável e que já estava em andamento. Por que não, então, simplesmente respeitá-lo, conforme os pais solicitavam?

Cabe observar que o conceito de eutanásia pressupõe que a aceleração proposital da morte do paciente se baseie na premissa de “evitar o seu sofrimento desproporcional e inútil”. No caso de Archie, os próprios médicos e magistrados caem na contradição de, por um lado, aduzirem o objetivo supostamente nobre de evitar o seu sofrimento, e, por outro lado, alegarem que Archie já estava cerebralmente morto, de modo que não poderia experimentar sofrimento algum. Ora, se não havia sofrimento a ser suprimido, então a intervenção proposital para acelerar a extinção dos seus sinais vitais não configurava nem sequer eutanásia. E se a eutanásia já é reprovável eticamente em si mesma, o que dizer de uma morte provocada à força e sem ao menos o “atenuante” de aliviar um “sofrimento despropocional e inútil”, que no caso nem existia?

Mesmo com todas estas graves considerações, ainda assim é legítimo que se discuta sobre o que pode haver de eutanásia e o que pode haver de distanásia neste cenário tão complexo. Afinal, clareza de conceitos é sempre bem-vinda – e é melhor o “excesso de clareza” do que a sua falta.

O que não é legítimo de forma alguma é que, havendo dúvidas e considerando-se o claríssimo desejo dos pais de Archie de respeitar o ritmo natural do autoesgotamento dos recursos vitais de seu filho sem que ninguém o acelerasse à força, os representantes da justiça britânica impusessem exatamente esta aceleração inapelável.

Ainda na eventualidade de que o desejo dos pais de Archie fosse “desproporcionado”, nem assim o Estado teria qualquer legitimidade para se intrometer e impor uma sentença judicial contrária à vida do menino, sobretudo quando uma das obrigações básicas do Estado é justamente a de defender a vida de todos os seus cidadãos. O Estado poderia – e deveria – manifestar-se contrário à família caso esta quisesse praticar a eutanásia; mas nunca poderia impedir a família de lutar pela manutenção do suporte à vida de um filho – nem sequer num caso de distanásia. Os poderes públicos são legítimos para impedir a morte dos indivíduos; jamais para impô-la, e muito menos contra a vontade expressa dos familiares de um doente atingido por tão ilegítima intromissão.

Ilegitimidade, em suma, é o que resume a decisão judicial que mandou desligar compulsoriamente os aparelhos de Archie Battersbee à revelia dos seus pais. A sentença de morte imposta pelos magistrados ao menino é ilegítima de qualquer ponto de vista por que seja analisada.

A aceleração da morte de Archie Battersbee não foi um caso de eutanásia, nem de distanásia e muito menos de ortotanásia. Foi um covarde e asqueroso assassinato.

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Alguns trechos deste artigo se baseiam em texto de autoria de Jorge Ferraz a propósito do caso do bebê Charlie Gard, assassinado em 2017.

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