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O faxineiro que limpa a casa de quem morreu sozinho

Morrer sozinho

Sergey Nivens | Shutterstock

Francisco Vêneto - publicado em 29/04/22

"O que me corta mais o coração é quando penso que ela deve ter suportado a solidão até o último suspiro"

O sul-coreano Kim Wan relatou recentemente, em entrevista à rede britânica BBC, algumas das experiências que vive como faxineiro especializado em limpar cômodos ou mesmo casas inteiras após a morte dos seus moradores – na maioria dos casos, pessoas que morreram sozinhas e cuja dilacerante solidão fica patente nas “pistas” que deixaram nos locais de sua partida.

“O lugar da morte é uma caixa de Pandora. Eu não sei o que está esperando depois da porta”.

Pessoas descartadas

É impactante observar que a “cultura do descarte”, tão denunciada pelo Papa Francisco e tão característica das nossas sociedades, se confirma tanto na vida quanto na morte de tantas pessoas esquecidas nas “periferias da existência” – outra poderosa expressão muito usada pelo Papa.

No tocante aos aspectos materiais, Wan revela que frequentemente fica impactado com a quantidade de lixo empilhado em algumas das casas que vai limpar. O lixo na casa costuma ser um indício do menosprezo e abandono com que a pessoa falecida enxergava a si mesma. Houve casos extremos, conta o faxineiro, de montes de lixo que superavam a altura dele próprio.

Solidão até o último suspiro

Na casa simples de uma mulher solitária, praticamente sem móveis e sem nada que revelasse conforto ou aconchego, ele encontrou uma pequena barraca de camping, cor-de-rosa, com espaço para apenas uma pessoa, montada no meio de uma sala nua. Talvez alguma forma de distração; uma simulação de aventura ou alguma lembrança saudosa de infância no meio do vazio da existência atual. Havia tão poucos objetos na casa que tudo coube em cinco caixas de macarrão. “Se você olhasse para aquela vida simples, sem móveis confortáveis”, comenta Wan, “você sentiria a realidade da morte solitária”.

“O que me corta mais o coração é quando penso que ela deve ter suportado a solidão até o último suspiro”.

O faxineiro declara que evita tirar conclusões fáceis sobre a vida dessas pessoas.

“A regra mais importante que tenho é não julgá-los de forma irresponsável”.

Depressão

Os indícios do sofrimento, porém, muitas vezes clamam no silêncio.

“Às vezes há medicamentos psiquiátricos prescritos para depressão. Me corta o coração toda vez que eu vejo esse tipo de coisa. Quando consigo deduzir a vida da pessoa pelas pistas na casa. Muitas mulheres jovens cometem suicídio. Acho que existem muitas pessoas cansadas de lidar com os próprios sentimentos”.

Wan menciona o caso de um apartamento em que a moradora falecida tinha tudo em pares: xícaras, talheres, tigelas.

“Quando vi na geladeira um tipo de sorvete de palito que podia ser partido em duas metades para ser dividido com alguém, pude imaginar um relacionamento valioso que tinha acabado de terminar. E pensei que isso a tinha machucado profundamente. E acho que tudo pareceu mais solitário ainda”.

Odor da morte

Wan não omite detalhes crus que recordam a fragilidade humana inclusive em nossa composição biológica.

“Toda vez que vou ao local de uma morte solitária, não existe morte limpa ou elegante. O importante é eliminar o odor. Nos primeiros minutos, eu não uso máscara. Você só consegue planejar a faxina se sentir o cheiro do jeito que ele é. Num apartamento de 100 m2, por exemplo, às vezes é preciso retirar todos os papéis de parede da casa. Tecidos humanos apodrecem e fedem (…) Se você ficar na cena da morte durante mais de 10 minutos, seu cabelo vai ficar com um cheiro forte. Eu sempre mantenho o meu cabelo curto”.

Suicídio

O faxineiro também registra muitas mortes solitárias de homens na faixa de 40 e 50 anos. Em muitas casas de mortos solitários, “tem avisos na porta dizendo que o gás, a luz ou a água vão ser cortados”. Igualmente, “muitas cartas de protesto por empréstimos em atraso ficam nas caixas de correio. Muitos dos mortos estavam passando por dificuldades financeiras”.

Esta situação é tão frequente e dramática na Coreia do Sul que serviu como base para a série de ficção “Squid Game“, ou “Round 6” no Brasil: com grande repercussão mundial, a série apresenta a chocante história de centenas de pessoas que, insuportavelmente endividadas, aceitam participar de um jogo que se revelará mortal: se falharem nas violentas provas a que serão submetidas, morrerão sem chance de escapatória.

Tão chocante quanto o jogo em si é o fato de que, logo após uma primeira prova extremamente sangrenta e durante a qual presenciaram o assassinato de dezenas e dezenas de concorrentes, os participantes sobreviventes têm a oportunidade de abandonar o jogo – mas a maioria decide retomar as “partidas”, porque consideram que a cruel realidade da vida “lá fora” é ainda pior do que um jogo em que sabem que é altíssimo o risco de morrerem de modo brutal, mas no qual eles ao menos têm uma remota chance de ganhar dinheiro para saldar o que devem.

Na vida real, Wan recorda a morte de um homem que se apresentava como palhaço em mercados. Ele deixou um bilhete antes de se matar:

“O mercado para palhaços acabou. Não tem mais trabalho para mim. Proprietária, você foi tão gentil comigo e eu sinto tanto por terminar a minha vida desta maneira…”.

Muitas outras mortes, acrescenta Wan, acontecem nas épocas de concursos públicos na Coreia do Sul. O país é conhecido pela imensa pressão social para que os cidadãos se saiam excelentemente bem em toda e qualquer prova, desde os primeiros anos de escola, ainda na infância, até qualquer oportunidade de crescimento na carreira. O índice de suicídios entre os que sofrem o peso dessa pressão – e o trauma da reprovação – é alarmante.

A Coreia do Sul tem a segunda maior taxa de suicídios no mundo, superada apenas pela Guiana, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Entre os países considerados ricos, a Coreia do Sul tem a maior taxa de suicídios do mundo.

“Limpando a casa dos mortos”

Kim Wan reuniu suas memórias e experiências no livro “Limpando a casa dos mortos”, em que compartilha de modo impactante o drama de um país em que a solidão é cada vez mais comum.

De todas as residências da Coreia do Sul, 29,9% são casas de um único morador. Os dados são de 2019. Trata-se de 6 milhões de moradores sozinhos. Embora não necessariamente solitários, são 6 milhões de sul-coreanos com risco maior de morrerem também sozinhos.

Em 2014, o país registrou 1.379 mortes solitárias. Em 2018, foram 2.447 – um aumento de 77,4% em menos de 5 anos.

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